“O último refúgio do oprimido é a ironia. E nenhum tirano escapa a ela. A mordaça aumenta a mordacidade.”
Millôr Fernandes
Não pretendo aqui reiterar o óbvio que cruzou o país nas últimas horas, Xexéo foi um grande em tudo, cronista, escritor, autor teatral, comentarista do cinema, da televisão. E da vida. Para começar, estimaria realçar algumas passagens que me fizeram não apenas admirá-lo como leitor, mas a estima-lo pessoalmente.
Ao começo dessa insensata radicalização política que vivemos, tive que ligar para ele ao ouvir de interlocutor radical que Xexéo nunca se definia partidariamente e era mais pra político mineiro. Resposta imediata do outro lado da linha – “Quem sabe…? Mas lhe envio agorinha um texto de crônica recente que peço remeter ao meu pseudo admirador-analista: “Este espaço está proibido para menores de 18 anos, porque pode causar deficiência moral irreversível. Atenção, senhores pais, este texto se refere à vida de quengas disfarçadas de homens públicos, que se aproveitam de tudo e roubam de todos sem punição. Essa gente miúda não está aqui somente agora. Sempre esteve”. Ancelmo Gois em artigo de ontem cita a indignação do cronista contra o desmantelamento da cultura e do crescendo avassalador da burrice, da grosseria, e das mentiras.
Aliás, Xexéo era ácido, sim, na ironia, mas uma flor de educação no trato pessoal, em que se realçava a solidariedade aos amigos e aos injustiçados. Até porque ela sabia tudo de tudo. Do cinema à literatura, da MPB à história pop, da TV (sua paixão por novelas deixou boquiaberta parte da “inteligentia” de então), tanto quanto sua admiração pelos espetáculos da Broadway (ele adaptou alguns como Xanadu, Love Story – o musical e Cor Púrpura, em parceria com Falabella e Tadeu Aguiar). Sua entrada como autor teatral me encantou em particular: quando pôs em cena as vedetes das revistas da Praça Tiradentes (anos 50) representadas por Sonia Mamede, logo a seguir Dalva x Herivelto Martins. Depois exporia sua devoção pela música francesa em “Nós sempre teremos Paris”, Além de outros musicais como “Cartola – O mundo é um moinho”, e “Minha vida daria um bolero”.
Quando o recebi no nosso Instituto da Urca para a primeira exibição em telão do documentário francês sobre Nana Caymmi (sua admiração) lhe fiz uma surpresa à porta do elevador. Mas antes retrocedo ao ano 2.000, quando ele foi assistir a dois espetáculos memoriais que criei, “Os Cantores de Chuveiro” (grupo de amigos, estrelas em suas profissões liberais, mas cantores amadores, que se apresentavam como estivessem no auditório da antiga Rádio Nacional, com jingles cantados pela primeira vez em cena no Brasil), e, logo a seguir, a volta das históricas Cantoras do Rádio dos anos 40-60, com roupas de época e demais detalhes, ambos produzidos por Claudio Magnavita, editor hoje do Correio da Manhã.
No camarim do Teatro Jovem depois do show, Xexéo e eu cantarolávamos os velhos jingles, enquanto eu me surpreendia com a memória e o conhecimento dele sobre o assunto, exibindo com fartura a cultura enciclopédica tão marcante em seu vasto acúmulo de conhecimentos. Ao recebe-lo na Urca fiz uma sonoplastia para alertá-lo na porta…pam pam pam. E cantarolei – “Quem bate? É o friiiioooo/Não adianta bater/ Eu não deixo você entrar/ As Casas Pernambucanas/ É que vão aquecer o seu lar…” – Xexéo em cima replicou – “Se a lâmpada apagar, não adianta reclamar, nem bater os pés/O que resolve/ É ter logo lâmpadas GE…”.
A meu ver, Xexéo teve como antecessor direto no estilo e na refinada ironia ácida o cronista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Várias foram as conexões que os ligariam, como os personagens imaginários, Dona Candoca, a noveleira, e Tia Zulmira, a sábia matriarca do Sérgio. Além dos concursos criados de pura gozação, as Certinhas do Lalau, faceando-se com Os Malas do Ano (em que Xexéo fustigava políticos e artistas, tal como Stanislaw). Outro concurso “xexeano” delicioso foi o Prêmio Zum Zum do Besouro (referência à música “Açaí” de Djavan, para apontar músicas com letras herméticas). Sua obra literária em livros conta com um best-seller, “Hebe, a Biografia”. E ainda “Liberdade de Expressão”, com Carlos Heitor Cony e H. Barbeiro, além de um hoje clássico da crônica futebolística, juntando textos escritos nas quatro Copas do Mundo a que ele compareceu não como conhecedor de futebol, mas como observador do cotidiano. Ali ele transcreve pequenas originalidades que seu olhar agudo captava dentro do campo e, sobretudo, longe dos refletores, abordando minucias tanto de jogadores quanto de torcedores, com ironia ou por vezes comiseração.
Tricolor de coração, mais silencioso que barulhento, Xexéo acalentou uma admiração fervorosa, o goleiro Castilho. Por que Castilho? Perguntei-lhe como tricolor que sou. Em cima a resposta “Porque você gosta tanto do Pixinguinha? São paixões e paixões não se explicam”. Como ninguém poderá dimensionar e explicar a falta que Artur Xexéo nos fará. E o muito que ainda teria a nos legar, como a cinebiografia de Bibi (em preparação com Falabella). Órfãos estamos todos de um cronista e homem de cultura irresistível, sem falar nos seus 17 leitores, nas fitas-bananas, nas novelas. Noveleiros, contudo, consolados pela leitura do charmosíssimo “Janete Clair – A Usineira de Sonhos”.
Até um dia Xexéo!