Vamos logo combinar que a pandemia que nos assola é assunto obrigatório. Ao menos para mim, terceira idade, alto risco, possível corda no pescoço. Agregue-se a isso o outro lado da moeda pessoal, o fato de jamais ter deixado de trabalhar em todas as muitas décadas de vida. Ou seja, não me reconheço senão a produzir coisas, “muitas sequencias e inconsequências”, como certa vez afiançou Molière em peça célebre.
Jamais imaginaria compartilhar desta guerra, um pesadelo assestado na humanidade como filme de terror, ou melhor, de science fiction em que os coronavírus fossem seres microscópicos de outro planeta para destruir “esses terráqueos inconsequentes”.
Eu, prisioneiro obrigado a não pôr o nariz à rua, descobri o fazer solitário em um computador. E isso porque fui aquinhoado, em meus conhecimentos rudimentares desta quase inteligência artificial, pelas boas graças de minha paciente sobrinha Ana Paula, sabichona dos segredos internáuticos. Um interlocutor, o PC, a quem podia afinal me dirigir sem máscara, aparentemente sem risco de contaminação. O que me fez recuperar certa autoestima e fugir da depressão que já começava a gravitar.
Aliás, abro aqui um parêntese para sublinhar uma questão que não quer calar, além do empobrecimento geral do país pós pandemia: nenhuma autoridade sanitária se referiu aos males paralelos que aparecerão depois da pandemia, os centrados nos psiquiátricos, provocados por procedimentos não humanos como a prisão em casa, sem qualquer proximidade física, incluindo essências de vida, como olhar nos olhos, abraçar, beijar e trocar segredinhos aos ouvidos. Isso para ficar apenas na insustentável leveza dos afetos pequeninos apregoados por Marcel Proust.
Pois bem, agora mesmo mergulhei de novo no fazer coisas, afastando a solidão a que a Peste nos confina. Estou a desenvolver on-line meu mais recente desafio profissional, o Pen Clube Internacional – Brasil, para o qual fui eleito dois dias antes da sexta-feira 13 de março. E a que me referi na última crônica neste jornal como o mais aziago dos dias. Aliás, uma superstição secular evocada com muita graça pelo escritor Marques Rebello como “o dia que deveríamos condenar a ser bissexto, tal como 29 de fevereiro”.
Medidas extremas foram acionadas no Rio pelo Governador Witzel, que a população vem cumprindo, surpresa mas confiante, segundo o IBOPE.
Nem cabe repetir agora todas as nossas provações, duras mas indispensáveis, como um lockdown, um confinamento inédito desde sempre para a contenção da pandemia.
Vale registrar que o coronavírus não foi espalhado, muito menos criado pela China. Até porque todo planeta é hoje uma aldeia única destituída de fronteiras clínico-epidêmicas.
Assinalo aqui que antevejo uma fatalidade incontrolável, o pior de tudo, a pandemia devastar as favelas e as comunidades carentes. Onde fica claríssima a péssima gestão dos administradores do Rio durante um século, provocando adensamento populacional em lugares de risco. Sem esgoto, sem postos médicos, sem ter para onde correr quando morros vêm abaixo, ou mesmo favelas em planícies ficam submersas. Onde dormem famílias inteiras em casebres precários e insalubres, amontoados uns aos outros.
Aliás destilo uma observação amarga, porque serão eles, os pobres, as vítimas mais agônicas dos que trouxeram ao Brasil o vírus, aqueles mais abastados que correram o mundo em avião, contaminaram-se em resorts, hospedaram-se em hotéis internacionais, onde jamais ficaram amontoados em quarto insalubre.
A pobreza no Rio não se concentra apenas nas favelas e comunidades carentes. Inclui também os moradores de rua. Os milhares que perderão seus bicos, seus empreguinhos informais, seu leite para as crianças. O que será dos milhares de presos em presídios desumanos?
Evoco aqui entrevista de Albert Camus ao jornalão Le Monde sobre seu livro “A Peste”, a meu juízo o mais aproximado cenário da pandemia de agora. O Prêmio Nobel franco-argelino retornava de viagem à África Negra. E pontificou: “revi em África situações piores que as descritas em A Peste. A miséria, a fome e a extrema pobreza, aliadas à ignorância, fazem parecer a tragédia que imaginei na Argélia em Conto de Fadas”.
Os primeiros contaminados em nossas favelas acabam de assinalar presenças na Cidade de Deus. E ao que soube há horas também na Rocinha. Desgraçadamente a Hidra começa a exibir suas mil cabeças mortíferas para os que menos podem combatê-las. Não permitamos que os sofrimentos que estão por vir para milhões de brasileiros desamparados mergulhem na tragédia de se converterem em conto de carochinha ao inverso. O terror ao vivo e a cores.
Ricardo Cravo Albin