“Tenho saudade das escolinhas que vi nascer, como minha Mangueira. Era tão simplesinha com os sambas de quadra que a gente cantava”.
Cartola para R. C. Albin – no MIS em 1966
A pandemia que até hoje nos atordoa provocaria mudança e redefinição de comportamentos socioculturais. O que jamais tínhamos visto desde o horror anterior da gripe espanhola do carnaval de 1919 – aliás, retratada com primor e originalidade pelo desfile da Viradouro, campeã do ano passado.
Aproveito para enfatizar que tivemos o primeiro carnaval fora de época, o de outono, e exatamente no dia da celebração a Tiradentes, o herói nacional que inspirou um dos desfiles mais cultuados, o do Império Serrano, que entoou o samba antológico
“Joaquim José da Silva Xavier/Morreu a 21 de abril/Pela Independência do Brasil/Foi traído e não traiu jamais/A Inconfidência de Minas Gerais/Joaquim José da Silva Xavier Era o nome de Tiradentes/Foi sacrificado pela nossa liberdade/Este grande herói/Pra sempre há de ser lembrado.”
Pena que ninguém se referiu a isso.
Quando disse acima que este de 2022 foi o primeiro carnaval fora de época, refiro-me apenas aos últimos cem anos. Porque houve dois anteriores. No fim do século 19, o início da República quis mudar o carnaval para junho. O Rio era vitimado no verão por epidemias severas como varíola e febre amarela. Os sabichões de sempre transferiram o carnaval para o inverno na crença de que temperaturas baixas não fariam propagar as epidemias. Não deu certo porque o junho de 1892 foi de temperaturas baixíssimas. Os festejos ficariam restritos apenas aos bailes fechados.
Já em 1912, com a morte do Barão do Rio Branco uma semana antes do carnaval, a festa foi remarcada para o período da Páscoa, tal como agora. E deu certo. Pela malícia e sabedoria intuitiva do carioca. Que festejou duplamente nas ruas, com um réquiem bem sacudido em fevereiro para o Barão, e com saracoteios adicionais nos dias apontados pelo Governo, em abril. Nas ruas a imbatível carioquice gritava a plenos pulmões:
“O Barão morreu/Teremos dois “carnavá”/Ai que gostoso/ Se morresse o “Marechá”.
Era o governo (1910 a 1914) do Marechal Hermes da Fonseca, avaliado como truculento, embora tivesse se casado com a mais encantadora Primeira Dama do País, a caricaturista e amiga dos artistas Nair de Teffé.
O que de fato ocorreu semana passada no Rio foi o monumental desfile das Escolas de Samba (elogio ao presidente Jorge Perlingeiro), e não um carnaval nas ruas.
Fecho o longo parêntese para ir direto ao assunto que me mobiliza agora. Propor à LIESA e à Prefeitura que está mais do que na hora de termos dois desfiles anuais no Sambódromo Darcy Ribeiro. Isso me foi formalmente cobrado pelas duas cadeias internacionais de televisão para as quais comentei tópicos do desfile. Argumento claríssimo dos gringos –
“Não esperávamos o milagre de um Carnaval suntuoso como este de agora, com as quase 700 mil vítimas da pandemia, com a máquina da indústria do carnaval desativada por quase dois anos, com as pessoas ainda intimidadas pela transmissibilidade do vírus.”
Acrescentaram ao seu espanto a sugestão certeira:
“Vocês com um espaço como este sambódromo, com este público caloroso e presente, é impensável não repetir este milagre no meio do ano. Fiquem certos de que o mundo estará aqui, fazendo do Rio a capital da alegria e do glamour.”
Esta ideia de um Carnaval no inverno ou na primavera sempre foi debatida. Mas os mal-humorados de sempre encontravam mil e uma razões para anulá-la, arguindo que os barracões não produziriam dois carnavais como se produz o único de fevereiro. O gravíssimo problema é que as pessoas parecem ter preguiça de pensar ideias novas. O desfile nº 2 para ocupar o Sambódromo seria necessariamente diferente do original de fevereiro. Eu imaginaria grandes mudanças. Como por exemplo: 1- a união Escola-Bloco – cada Escola convidaria um ou dois Blocos tradicionais para abrir e fechar o desfile, e no meio, ou centro, o desfile de fevereiro da Escola seria agrupado em quatro ou seis grandes alas compactas, mudando-se aqui ou acolá pequenos detalhes da fantasia, ao gosto do carnavalesco. Que também imaginaria adereços (fáceis e baratos) para os dois Blocões de abertura e encerramento. O desfile seria um misto de Escola de Samba simplificada com a adesão dos Blocos, tal como nos inesquecíveis desfiles da dupla Cacique de Ramos e Bafo da Onça, nas terças à tarde na Rio Branco. Eu assisti a todos, sempre encantado.
A música? Uma combinação de união das alas de compositores dos Blocos convidados e das Escolas. O Samba? Samba de quadra, livre, sem enredos a aprisioná-los. Aparentemente difícil a realização? Acudo-me de uma frase de meu amigo Cartola, depois dos uísques e da carne assada da Zica lá no chalé da Mangueira (que barraco, que nada…) do casal:
“De fato, quando eu imaginei a Mangueira eu só via um Bloco, não esse luxo de hoje, não essa complicação de agora”.
Por que não voltar às origens cartolianas de um segundo desfile da Sapucaí?