“Ela desafiou todo tipo de repressão. Foi amada pelos fãs e odiada pelos machistas e caretas.”
Bernardo Mello Franco in “Rita contra repressão”, página Opinião – O Globo.
A morte de Rita Lee ensejou diversas análises sobre o comportamento pessoal da mais irônica, desinibida e transgressora das intérpretes deste país. Muitas vezes mais censurador que liberal, mais acanhado que desinibido.
Como seria mesmo de se presumir, um dos triunfos iniciais de Rita, Lança Perfume, foi molestado pelo “cutelo vil da censura”, como rotulei a antiga DCDP (Departamento de Censura de Diversões Públicas, de tristíssima memória) no livro “Driblando a Censura (Ed. Griphus-2002)”. O volume abriga uma súmula dos meus pareceres ao Conselho Superior da Censura. Todos eles por óbvio sempre contrários aos vetos dos censores da primeira instância (o tal DCDP). Aliás, o Lança Perfume, sucesso no mundo inteiro especialmente na França, foi proibido ao submeter-se à censura da Polícia Federal. Eis o paradoxo: não pela referência às drogas exposta no título da música, mas sim pela expressão “me deixa de quatro no ato”. “A moralidade pública não poderia permitir o uso do duplo sentido tão malicioso no penúltimo verso”, argumentou a censora. Esquecendo-se do que todos os amigos (e a própria Rita) temiam: o cutelo vil seria assestado contra toda a essência da canção, a droga, ou seja, o ato de inalar o lança-perfume.
Rita me telefonou nesta mesma noite da proibição da música para indagar se deveria recorrer ao Conselho de Censura, já então afamado por liberar os recursos que eram relatados pelos representantes da sociedade civil (eu entre eles pela ABERT, além de Suzana de Moraes (cineastas), Pompeu de Souza (ABI), Daniel Rocha (SBAT)) e, mais meia dúzia de titulares dos censurados.
Rita espalhou a notícia, o que gerou efeito quase imediato e único, a própria Censura passou por cima do seu próprio parecer censório, temendo a quase derrota no Conselho e liberou a “peça lítero-musical” (assim os censores chamavam as músicas a eles submetidas). Mas logo se vingaria contra Rita, proibindo de uma vez só 6 (seis) das 12 (doze) faixas do disco Bombom (1983).
Fui indicado pelo plenário do Conselho como relator de três peças proibidas de Rita Lee, Moleque Sacana, Bobagem e As Duas Faces de Eva. Todos os pareceres estão no livro “Driblando a Censura”.
A primeira (parceria com o Mu) foi vetada na íntegra em virtude de “ser a palavra sacana considerada de baixo calão”. Em longo e paciente parecer de quase cinco laudas ganhamos por unanimidade a liberação do “moleque” da Rita com alguns argumentos algo sutis, algo irônicos. Que cito: “por que a censura implica com palavra de uso tão comum e corrente nos dias de hoje? Se o adjetivo sacana fosse mais restrito, somente o seria, quem sabe há um século, quando os censores de agora ainda não tinham nascido, suponho eu com alguma razão, ou, digamos, dúvida. E prosseguia: “o cronista João do Rio por essa época já apontava a reverência à cultura do povo. E, em especial, a língua com que o povo se comunica. O cronista carioca apregoava o respeito ao canto popular como sendo a maravilhosa alma das ruas, porque refletidora de uma maioria, esse gigantesco e sábio zé povinho.
O Dicionário Aurélio decreta: – Sacana não é senão sinônimo para esperto, ladino, irreverente. De mais a mais, uma língua só existe porque é falada. E essa dicotomia entre língua falada e língua escrita tende a acabar. Ou a língua “é” ou “não é”.
No dia seguinte à reunião, Rita me liga, e às gargalhadas me espeta uma argumentação inesperada – “Esses censores são mesmo cegos. O sacana do meu moleque nem é ele. Sou eu mesma, pô”.
A segunda peça proibida da Rita que me coube relatar no plenário do Conselho foi “Bobagem” (parceria com Lucia Turnbull), proibida pela cândida e tosca razão “de ser contra a moral e os bons costumes”. Depois de muito procurar, defini-me pela interpretação da fúria censória incidir sobre o emprego do verbo “dar” nos versos “talvez seja tarde para você/ Relaxar e dar pra mim/ Só pra mim”. E desfilei uma série de exemplos do verbo como sinônimo de trocar, dar carícias, fazer amor. “O verbo dar já firmou jurisprudência de malícia dentro da canção popular. Eu me fixaria na marchinha “Eu dei”, do mestre Ary Barroso, triunfo no carnaval com Carmem Miranda, uma antecessora da graça e descontração da Rita Lee de hoje “Eu dei, eu dei/ O que foi que você deu, meu bem/ Não digo, não digo/ E adivinhas se és capaz”. Ary e Carmem foram os campeões do carnaval em plena ditadura de Vargas. E induz a uma malícia insistente, continuada. Rita emprega o verbo dar como fazer amor, entregar-se. De mais a mais, Rita triunfou antes com “Meu bem você me dá…água na boca/ Vestindo fantasias, tirando a roupa”. Isso sem citar a explicitude de Caetano no sucesso “Eu como, eu como/ Eu como você…”.
A terceira música de Rita, liberada contra a censura com meu parecer foi “As Duas faces de Eva”, proibida por referir-se ao ciclo menstrual da mulher – “Mulher é bicho esquisito/ Todo mês sangra/ Um sexto sentido maior que a razão/ por isso não provoque/ É cor de rosa choque”. E driblando, ou tentando driblar a censura, eu defendia Rita Lee “pela coragem em ousar abordar tema pouquíssimo usual em MPB. Por que a proibição da mulher em seu ciclo vital? Preconceituar-se um assunto sério e digno, pura tolice. A letra de Rita Lee não torna obsceno, muito menos vil, assunto tão delicado à sexualidade da espécie humana, ligado ao maravilhoso mistério da concepção. E da vida”. E conclui: “Acresce o fato de que a propaganda de hoje explicita, até em outdoors, produtos íntimos para a mulher. Portanto, ao solicitar a liberação desta música, louvo a coragem (além da originalidade) da letrista em abordar tema jamais obsceno: A mulher em suas circunstâncias que podem atingir nada menos que a criação divina de Deus”.
Ricardo Cravo Albin