Estamos acostumados a dizer que a massa dos homens é despreparada, mas o progresso é lento porque a minoria não é mais sábia ou melhor do que a maioria.
Fico fortemente tentado a endossar este pensamento do filósofo Henry Thoreau quando se anunciam os desconfinamentos e os protocolos de abertura no Brasil, face à pandemia que leva o país a ser o vice-campeão mundial de infectados e mortes nesses três últimos meses, logo depois dos Estados Unidos. E arrisco acreditar no despreparo da massa brasileira porque nesses últimos dias tenho visto, ao menos, na Zona Sul do Rio, pessoas sem máscaras e demais equipamentos de proteção individual ou coletiva.
Ao que se lê, a quase maioria da Europa – e agora o Rio de janeiro – já começa a abrir-se para a necessaríssima atividade comercial. Nós, campeões também do descuido e da má gestão dos serviços hospitalares, somos um país pobre que recuperava a economia à duras penas. Até que a malsinada Peste nos fez andar para trás, tornando ainda mais urgente estancar a sangria da pobreza que se esboça a olhos vistos pela economia combalida. Sim, é urgente cuidar da recuperação econômica. Mas é aí, infelizmente, que mora o perigo porque as consciências sãs deste país têm que compreender que ainda mais urgente que a economia é estancar as vidas que se perdem, até pela agonia do tosco atendimento hospitalar.
Segundo um médico amigo meu, os hospitais – alguns, não a maioria, esperamos nós – são obrigados a deixar pacientes morrer quase no mesmo número dos que são salvos. Esta tragédia nos faz refletir sobre o atual desconfinamentos imposto a uma massa de pessoas despreparadas, que hoje já até poderia refletir uma maioria de descuidados.
O que me horroriza é que prefeitos e governadores podem não cumprir os protocolos para uma abertura segura, o que provocará mais infecções e sua infelicitação maior, mais mortes e sofrimentos. No Rio de Janeiro, acabo de ler que os templos religiosos seriam reabertos. Um desatino que foi proibido pela justiça.
Todos os que estamos recolhidos nesta quarentena indesejada, sempre cruel (para dizer o mínimo), acompanhamos a situação se agravar em vítimas a cada semana. O fato ainda mais nos preocupa nas comunidades pobres, sobretudo os habitantes de favelas insalubres (e o Rio é cercado por elas), bem como os povos indígenas isolados em seus guetos nas florestas ameaçadas pelo desmatamento, além de perseguidos pelos usurpadores de suas terras.
A grande tragédia desgraçadamente continua a bater a nossa porta a cada semana com números ascendentes de infectados, em especial no Rio, que está por relaxar o confinamento.
Até que ponto seguro?
Acabo de ler que cientistas do projeto EndCoronavirus, mantidos por oito das melhores universidades americanas, discutem formas eficazes para conter o contágio e formular protocolos para reabertura segura de cidades no mundo após a quarentena.
Essas diretrizes insistem no que sabemos, o uso de máscaras e testagem massificada da população (aliás quando teremos este item básico para todos os cariocas?). Esse grupo de cientistas recomenda, para começar, restrições de locomoção dentro do território do mesmo país, para evitar pessoas transitarem em regiões com diferentes taxas de contágio. Os cientistas também recomendam, com vigor, que o relaxamento das restrições só deve ser autorizado quando o país conseguir alcançar uma taxa mínima de contaminação comunitária, a mais próxima de zero.
Aliás, a Nova Zelândia foi um dos raros países a anunciar há pouco que registra agora zero contaminação. O isolamento imposto pela primeira ministra foi dos mais rígidos do mundo, fechando todos os serviços públicos, até inclusive – o que é extraordinário para nós – entregas de comidas em casa.
Finalmente, a pergunta que não quer calar – será que todos os prefeitos e governadores estão sendo informados deste precioso estudo do projeto EndCoronavirus?
Creio que o governo federal deveria solicitar ao governo americano e distribuir essas instruções a todas as cidades do país.
Ficaríamos bem mais protegidos do despreparo tanto das instruções de governadores e prefeitos sobre a retomada, quanto da desobediência civil da maioria da massa brasileira que se confunde com a minoria, ainda mais despreparada e infratora.
Resta rezar a Deus Nosso Senhor. E falando nisso: no último domingo tive a alegria de acompanhar a abertura do Vaticano. O Papa Francisco rezou missa junto aos fiéis na Praça São Pedro. Aliás, havia menos pessoas do que o habitual, embora todas com máscaras e conservando a distância protocolar entre elas.
Falando nessa pequena alegria não posso deixar de registrar a tristeza – essa muito grande – pela morte do meu fraterno amigo Murilo Mello Filho. Ele foi um celebrado jornalista, testemunha ocular e analista político de ao menos trinta anos da história do Brasil. Além de um ser humano adorável, cujo convívio ameno era puro privilégio. Murilo engrandeceu a diversidade da Academia Brasileira de Letras, como representante dos comentaristas das lides políticas, ocupando o lugar de Carlos Castelo Branco, o Castelinho, um estilista de texto sofisticado.
Hoje ambos estão representados na Casa de Machado de Assis por Merval Pereira. Vale anotar que as três gerações desses jornalistas políticos da ABL sempre convergiram em um ponto essencial: independência e coragem de opiniões e conclusões. Além do bem escrever.
Ricardo Cravo Albin