“Nada além, nada além de uma ilusão”. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei / Numa noite de luar assim / O mar na solidão bramia / E o vento a soluçar pedia / Que fosses sincera para mim / Meu coração, não sei por que…” Quem me mostrou a beleza do canto de Orlando Silva foi meu amigo Arrigo Barnabé. Minha família é muito musical, na infância eu vivia rodeada pela música, mas não me lembro de ter ouvido Orlando Silva e acho mesmo que não ouvi porque seu canto é algo que não se esquece. Lembro de ouvir Silvio Caldas cantando Chão de estrelas, Vicente Celestino, Ébrio, Carlos Gardel, “Rechiflao em mi tristeza, / Te evoco y veo que has sido / de mi pobre vida paria sólo uma buena mujer”, mas Orlando, não lembro não. Nos anos 70, quando conheci o Arrigo, ele falava muito do Orlando Silva e me mostrou algumas gravações. Eu me encantei e fui atrás dos LPs que tenho até hoje: Quando a saudade apertar, Orlando Silva nos anos 40, e outro intitulado Orlando Silva, de 1937, seu disco mais importante porque nele gravou Carinhoso e Rosa.
Em Outros Sons, gravei Febre de Amor, de Lauro Maia, A felicidade perdeu seu endereço, de Claudionor Cruz e Pedro Caetano e a versão de Haroldo Barbosa para Beguin the beguine, de Cole Porter. Todas as três aprendi ouvindo Orlando Silva.
Orlando Silva (1915-1978), o cantor das multidões, nasceu no Rio de Janeiro e teve uma infância pobre e sofrida. Seu pai era funcionário de uma ferrovia e morreu muito cedo, vitimado pela gripe espanhola, quando Orlando tinha apenas 3 anos de idade. O menino não pode estudar por muito tempo, precisou logo trabalhar. Entregava marmitas nas redondezas do bairro em que morava e fazia isso descalço, porque não tinha sapatos.
Era na casa de sua vizinha, Dona Noêmia, que passava horas felizes: com ela ficava ouvindo no rádio os grandes cantores. Adorava Francisco Alves e gostava de brincar subindo numa amoreira e imitando, lá de cima, o cantor. Dona Noêmia ficava espantada com a voz do menino e a facilidade que ele tinha para cantar aquelas notas tão agudas… Impressionante. Orlando, para se escutar melhor, inventou de fazer o seguinte: projetava sua voz numa lata de manteiga e tampava os ouvidos com algodão.
Aos 16 anos, Orlando Silva sofreu um grave acidente, caindo do bonde em movimento, num fim de tarde, quando voltava do trabalho. Perdeu um quarto de seu pé esquerdo e ficou internado por alguns meses, com muitas dores. Para suportar a dor, precisou tomar altas doses de morfina. Por conta desta internação longa, perdeu seu emprego de balconista, mas logo foi trabalhar como cobrador numa empresa de ônibus. Num final de tarde, na garagem da empresa em que trabalhava, Orlando começou a cantarolar e logo os funcionários pararam para ouvir. Todos ficaram encantados ao ver aquele rapaz de 18 anos cantando como os grandes cantores da época. A voz de Orlando Silva tinha um timbre lindo e uma tessitura privilegiada, mais de duas oitavas. Depois disto, ele passou a cantar todos os dias depois do expediente.
Um amigo disse a ele que já estava na hora de se tornar cantor profissional. Para isso, precisaria ser contratado por uma rádio e foi Luiz Barboza, produtor da Rádio Cajuti que o recebeu para um teste. Muito tímido, Orlando entrou no estúdio e cantou a valsa Céu Morenode Uriel Lourival. Sua linda voz preencheu toda a pequenina sala do estúdio e foi ouvida por um famoso boêmio e descobridor de talentos, o compositor Bororó, que ficou deslumbrado. Bororó levou o garoto para ser ouvido por, nada mais nada menos, que o rei da voz, Francisco Alves. O encontro foi na Avenida Rio Branco, em frente ao cabaré mais famoso da cidade, o Sirius. Chico Alves parou o carro em frente ao cabaré e pretendia ouvir o rapaz ali mesmo, na rua. Quando viu aquele menino acanhado e franzino foi tomado por um sentimento de compaixão. Chico levou o menino para dentro do carro. Orlando estava em pânico e só conseguiu cantar algum tempo depois. Cantou a valsa Lágrimas, de Candido das Neves. O “rei a voz” não podia crer no que estava ouvindo, aquela voz… que beleza, mas o que era aquilo? Chico Alves sentiu uma certa insegurança na presença daquele garoto tímido que em breve seria o “cantor das multidões”.
Chico levou Orlando para cantar em seu programa de estreia na Rádio Guanabara. Passado seu batismo de fogo, Orlando desta vez cantou como se estivesse em casa, mostrando toda a beleza de sua voz, o timbre, a agilidade, a extensão. Que interpretação! Em dois anos o sucesso de Orlando Silva seria estrondoso, a ponto de suplantar o de seu padrinho.
Em 1937 Orlando Silva já era uma das maiores estrelas da RCA Victor, gravadora de artistas com Carmem Miranda, Silvio Caldas e Chico Alves. Além disso, era uma das principais atrações da Rádio Nacional, cujo sucesso ajudou a fazer e a consolidar. Era disputado pelos grandes compositores da época e era muito cuidadoso não só na escolha de seu repertório como também na dos arranjadores. Neste mesmo ano gravou duas faixas memoráveis, uma de cada lado do LP: Lábios que eu beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo e Juramento Falso, de Pedro Caetano, e ambas tiveram arranjo do grande maestro Radamés Gnatalli.
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Neste mesmo ano, gravou o LP antológico que tinha no lado A Carinhoso, de Pixinguinha, com letra de Braguinha, e no lado B Rosa, de Pixinguinha e Otávio Souza. Os arranjos também eram de Radamés. Nem é preciso dizer que jóia rara é este disco! O sucesso foi estrondoso e nem a gravadora nem Orlando imaginavam que iria ter esta dimensão. Foi nesta época que o cantor se assustou quando, numa apresentação no centro de São Paulo, quase foi literalmente morto por suas alucinadas fãs. Assim nascia o epíteto que o acompanharia para sempre: Orlando Silva, o cantor das multidões.
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O sucesso vertiginoso de Orlando Silva não tinha como se sustentar, não havia suporte social ou pessoal para isso. A própria gravadora não tinha como atender aquela demanda. E o mundo estava mudando. As rádios, a partir de 42, começaram a mudar sua programação, pois diante da tragédia da segunda Guerra Mundial os noticiários passaram a ocupar o espaço antes reservado às canções. Além disso, um mar de adversidade invadiu a vida de Orlando Silva: ele viveu uma tempestuosa relação passional que o desestabilizou demais e sua saúde se debilitou muito em virtude de uma doença que destruiu parte de seus dentes e que provocava muita dor. Para aplacar a dor, ele teve que, pela segunda vez, recorrer ao uso de morfina. E havia também a bebida… Enfim, profundamente debilitado, sua voz enfraqueceu. Sua popularidade já não era mesma. Em 1946, a Rádio Nacional, que lhe devia parte de sua grande audiência, o despediu e a gravadora Odeon o demitiu. Mundo, mundo, vasto mundo… tamanha falta de consideração! Seguiu-se então um triste período de ostracismo e dificuldade de toda sorte.
No início dos anos 50, a Rádio Nacional o chamou de volta, e as gravadoras também. Mas ele já não era o mesmo, nem era o mesmo o tempo. A fase áurea dos cantores do rádio havia passado. Entrava em cena um novo e poderoso veículo de comunicação de massa – a televisão. E a música popular passava por uma radical transformação com o advento da Bossa Nova, cuja estética era oposta à do canto pungente e emocional, de voz forte, carregada de vibratos, que predominara nos anos 30 e 40.
Mas, é preciso notar, que o modo de cantar de Orlando se destacava do de seus colegas. Ele e Mário Reis tinham um jeito de cantar que depois serviu de inspiração e guia para a Bossa Nova. Em Orlando, que era um romântico, a emoção nunca é muito exagerada, derramada. Apesar de alcançar notas muito agudas, ele fazia isto com leveza e naturalidade, não havia esforço. Tinha a voz possante, mas nunca cantava muito alto. Digamos que nele havia aquele “discreto inflamar-se da paixão” que caracteriza a alma lírica. E que voz! Não foi à toa que João Gilberto disse dele “Foi o maior cantor brasileiro de todos os tempos”. E Paulinho da Viola: “Depois de Orlando cantando com arranjos do Pixinguinha e Radamés Gnatalli não preciso ouvir mais nada.”
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=k6BHozYoY2I
Fonte: Piauí
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