“Defender ideias corretas e não submergir ante políticas duvidosas custam muitíssimo mais que ser obrigado a assentir aos homens públicos.” – Santiago Dantas, em Aula Magna de 1968 na Faculdade Nacional de Direito da UB.
Esta frase lapidar do nosso professor Santiago Dantas ao abrir o ano letivo na velha Faculdade Nacional de Direito ficou grudada na memória de boa parte de seus alunos e devotos ao começo daquele ano tempestuoso que seria 1968. A reflexão do Mestre me veio à memória assim que soube das notícias incômodas da adesão do Presidente eleito à reeleição de Arthur Lira à Presidência da Câmara. Ocorre que o deputado alagoano foi não só instalado no ambicionado cargo de Presidente da Câmara por Jair Bolsonaro, como seria nos últimos dois anos seu principal escudeiro, aliado e possível consultor do muitíssimo combatido (por Lula) orçamento secreto, definido pelo eleito na campanha eleitoral como o maior de todos os escândalos, como a corrupção-máster. Lira teria fingido não ver os crimes de responsabilidade contra Bolsonaro cortando dezenas. E trancaria embaixo de seus travesseiros mais de uma centena de pedidos de impeachment do então presidente em exercício. Além de aliado fidelíssimo, o Presidente da Câmara – a quem o decoro requereria contenção e discrição em atos eleitorais – subiu a vários palanques em atos marcados por ataques ao STF, um dos motes eleitorais de Bolsonaro.
Qual não foi a minha surpresa, na verdade uma surpresa, ou antes um susto também para uma multidão que torce igualmente mais para que o novo Presidente possa ser bem-sucedido. Ou melhor, para que o próprio país marche à frente e não em retaguarda. Por que Lula admite tal adesão? Como chegar a declarar que o PT apoia a reeleição de inimigo tão declarado? Eis aí que aparece uma singularíssima palavra mágica, um encantamento, uma “explicação” para o milagre, a palavra encantada “pragmatismo”. Lira já estaria, político habilíssimo, com a vitória garantida. Mas como garantida, com novo governo se armando, com a faca e o queijo às mãos?
Intrigadíssimo, querendo bem avaliar o estranho poderio do deputado, corri a pesquisar sua carreira. Lira começou a aparecer como discípulo bem-mandado do indefectível Eduardo Cunha. O Centrão, esse núcleo de deputados de pureza virgínea, que abomina sequer que se transite no seu entorno um palavrão chamado dinheiro, leia-se também, orçamento secreto, por óbvio. Pois bem, Arthur Lira transitou de repente, não mais que de repente, como o mais hábil político profissional do Brasil, dobrando a seu capricho até o recém-eleito novo Presidente do país.
O cronista Bernardo Mello Franco, de quem sou leitor assíduo, assinou duas colunas sobre esse singular fenômeno.
Em um deles, acentua que para se reeleger, o “Chefão da Câmara montou uma frente amplíssima, conseguiu unir o PT de Lula ao PL de Bolsonaro. Pelas contas de agora, Lira já ultrapassou mais de 400 votos.” Bernardo prossegue em sua notável peroração no Globo, ao citar um dos deputados mais influentes do PT: – “Ruim com ele, pior sem ele. O petista se refere ao trauma de 2015 quando Dilma resolveu enfrentar Eduardo Cunha. Foi derrotada e ganhou um inimigo na cúpula do Congresso.
De fato, cabe aos livres pensadores, como todos nós, advertir ao Presidente Lula que o pragmatismo político há de ser absorvido, quando inevitável. Mas não deve abater os limites da decência. Jamais deveria ser utilizado para destruir os portais da sedimentação de propostas, ideias, planos de pensar o próprio Brasil. E quebrar aquilo que ainda resta de decência política.
Volto a Bernardo, que citou em artigo mais recente a deputada Luiza Erundina, reeleita para o sétimo mandato: “Lira exerceu péssimo papel na Presidência da Câmara. Mudou o regimento para dificultar a participação da minoria e em certas ocasiões teria até sido mais cruel com o povo que o próprio chefe Bolsonaro. É inaceitável apoiá-lo em nome da governabilidade.” conclui Erundina, paradigma de decência por décadas a fio.
Ricardo Cravo Albin