Samba, gênero nacional do Brasil, nasceu perseguido e excluído.
A população mais pobre do Rio, especialmente os que descendiam dos guetos da escravidão e que habitavam os cortiços negros paupérrimos da zona da Cidade Nova e da Central do Brasil – a Praça Onze antiga era o coração daquela região, nas mesmas imediações onde hoje está o sambódromo Darcy Ribeiro – continuava a exercitar-se nos seus batuques e nas rodas de pernada e de capoeira. Eram, sobretudo, os bahianos e seus descendentes, que, da Bahia, vieram para o Rio de Janeiro, com o fim da guerra dos Canudos, direito que ganharam por lutarem nas tropas contrárias a Antônio Conselheiro; foram morar nos morros cariocas e, a exemplo do arraial do Bom Jesus, apelidaram o agrupamento de casas que foi se formando, então, de favela. Pois bem, esta parte da população não saía no carnaval de forma organizada, mas em blocos desordenados, cujos desfiles terminavam quase sempre em grandes brigas de capoeira e em “terríveis cenas de sangue”, segundo o cronista João do Rio, que, atento às evoluções urbanísticas do Rio, fez um paralelo curioso entre a Praça XI dos ex-escravos e a Avenida Central, inaugurada em 1902 e que ele considerava um traço de separação entre o Rio passado e o novo: “A avenida chic / Eu sou a Central / da elegância o Tic / Dou à capital”.
Da música à base de percussão e de palmas, produzida por esses negros com o nome de batucada, iria nascer o samba, palavra de origem africana (Angola e Congo), provavelmente corruptela da palavra semba, que pode significar, de um lado umbigada, ou seja, o encontro lascivo dos umbigos do homem e da mulher na dança do batuque antigo; de outro, tristeza e melancolia (ou quem sabe saudade da terra africana natal, tal como os blues nos Estados Unidos) –– como bem escreveu Caetano: “A tristeza é senhora./Desde que o samba é samba é assim”. Aliás, a expressão samba foi publicada pela primeira vez (3/2/1838) por Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, na revista pernambucana Carapuceiro; restringindo-se a definir, então, mais um tipo de dança ou de folguedo popular de negros.
Além dessas rodas de capoeira e de batucada, quase sempre realizadas nas ruas e praças daquelas imediações da antiga Praça XI, ficaram célebres as festas que se realizavam nas casas das até hoje celebradas Tias Bahianas (Tia Ciata – a mulata Hilária Batista de Almeida era dentre todas a mais festejada). Eram, em geral, grandes quituteiras que davam festas para comemorar as datas importantes do calendário do Candomblé. Os festejos duravam até uma semana: os pagodes, justamente nas casas das Tias Bahianas, como eram carinhosamente apelidadas, ocorriam em dois tempos, segundo me informaram em depoimentos que colhi para o Museu da Imagem e do Som entre 1966 e 1967 não só Donga e João da Bahiana, mas também Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, todos freqüentadores e – à exceção de Pixinguinha – filhos de mãe de Santo. No fundo da casa, a devoção aos orixás, preservando o ritual das datas do Candomblé. Acabadas as obrigações, os pagodes tinham lugar, mas já em outros cômodos, geralmente nas salas da frente dos cortiços decadentes ou dos sobradões abandonados pela burguesia, então em busca de novos bairros da moda, como Botafogo, Laranjeiras e Humaitá.
Mas o samba só veio a ser registrado com esse nome em disco pelo quarto desses pioneiros, Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (Rio, 1899 – Rio,1974). Filho de Tia Amélia mas também freqüentador dos folguedos de Tia Ciata, Donga gravou uma música feita por ele e pelo cronista carnavalesco do Jornal do Brasil, Mauro de Almeida, o Peru dos Pés Frios, baseada em motivo popular, a qual intitularam Pelo Telefone. Esse fato – aparentemente banal – teria a mais profunda repercussão tanto para a história do samba (apesar de Pelo Telefone ser mais para maxixe do que para o samba, tal como hoje o reconhecemos), quanto para a definição do começo da profissionalização da MPB. Era janeiro de 1917, às vésperas, portanto, do carnaval, e a primeira providência do Donga foi registrar música e letra na Biblioteca Nacional, o que equivalia a tirar patente da música. Trocando em miúdos, significava que uma música popular estava a atingir o estágio importante de produto comercial passível de ser vendido e de gerar lucros. Pelo Telefone, gravado pela Banda Odeon e logo depois pelo Bahiano da Casa Edison, deu a Donga as glórias da posteridade, como o primeiro samba gravado, inaugurando a palavra samba como gênero musical. Que logo depois, com sua consolidação, seria a representação própria da música popular no mundo inteiro.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do
Instituto Cravo Albin
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