Foi lançado em novembro o livro “450 Anos do Rio de Janeiro”, editado pela Academia Carioca de Letras. O luxuoso livro consta de dezenas de ensaios escritos pelos maiores intelectuais da cidade, além de farta e rara iconografia sobre o Rio nesses 450 anos.
Leia a apresentação de Ricardo Cravo Albin, presidente da Academia Carioca de Letras, para o livro 450 Anos do Rio de Janeiro.
“Há certas confluências de adjetivação que podem levar a ideias precisas, e até mesmoa uma quase simbiose com o substantivo. São palavras que parecem se atrair comoímãs, uma conjugação que beira a solidez de ideia, de definição. A Academia Cariocade Letras sempre deve honrar seu adjetivo definidor, uma sina tão aclarada quanto a sua açãoliterária. Especialmente radiosa, neste ano em que o Rio celebra 450 anos de consolidação,como a cidade mais formosa dentre todas, o berço natural da cultura e da convergência deantípodas, dentro de um país continental de contradições e aculturamento, tão provocadoresquanto assustadores.
A Academia clama pela carioquice desde a posse da minha diretoria para o biênio 2014-2015. A partir de intelectuais, cuja fímbria roça a capacidade de fazimentos e de originalidades,nossa equipe pôde realizar programação fomentadora. Uma diretoria una e desafiadora, querespalda minhas inquietações, por vezes atrevidas, e estimula o agir. Do vice-presidente, CláudioMurilo Leal, ao Primeiro Secretário, Adriano Espínola, da Segunda Secretária, Miriam Halfim,ao Tesoureiro, Edir Meirelles, do Diretor de Publicações, Paulo Roberto Pereira, à Diretora daBiblioteca, Teresa Cristina Meirelles de Oliveira, todos fraternos e operosos.
Ao transferir as palestras convencionais para um Fórum Carioca de Cultura, a Academiapôde exercitar sua vocação de nascença, ou seja, alinhar-se ao Rio e ao desejo de perfilar extratoscariocas. As muitas faces da cidade foram e estão sendo desveladas em encontros sequenciais,que aquinhoam a memória da urbe e o seu espírito orgânico, a partir de escritores, pesquisadorese enquadramentos temáticos. Esta cidade de tantos encantos, que a Academia privilegia emsua identidade cultural, já foi cantada em prosa e verso por viajantes de todas as partes e porcariocas aqui nascidos ou não (que ser carioca é mais que nascer no Rio, é adotá-lo no coraçãoe nele morar).
Desde tempos do vice-rei, a opulência das florestas, das montanhas e das praias do Rio –um conjunto natural único no mundo – já era objeto dos ais e ohs dos pintores, dos cronistas, e dos violeiros anônimos das ruas. No remoto ano de 1935, o poeta carioca Noel Rosa chamouo Rio de Janeiro, apesar de masculino, de “Cidade Mulher”, música criada pela magia da voz deOrlando Silva. E por que a “mulher” para definir o Rio? Pelas curvas sensuais de sua topografia,pela beleza e, especialmente, pelas águas em tudo penetrando e tudo fecundando.
E as festas populares? Finas flores de sua alma gentil, brincalhona, moleca, quando nãodeliciosamente ingênua. Aliás, não foi à toa que o cronista João do Rio sempre insistiu emreferir-se aos folguedos coletivos como os pulmões e o coração da cidade de São Sebastião. Ouseja, a essência da vida do carioca, o hálito vital sem o qual a beleza e a sedução do Rio fenecem.Não se pode falar das festas populares cariocas sem mencionar a maior delas, o carnaval.Fenômeno espontâneo, brotado da necessidade e prazer do povo em se divertir. Festa do povoe festa de todos com sua monumental apoteose de hoje: o desfile das Escolas de Samba. Têmelas a gravíssima responsabilidade de apresentar o mais belo espetáculo de acúmulo de arte queexiste no mundo. “Só quem assiste a uma prova de beleza e organização popular como essa,pode ter a certeza de que o Brasil tem jeito”, disse certa vez Nélida Piñon. Com igual ênfase,o sociólogo francês Michel Maffesoli já chamou a atenção da comunidade intelectual para adescarga de vitalidade, de beleza e de ineditismo mundial que representa a concentração dearte popular no momento transfigurador de um só desfile, de uma só agremiação na magia docarnaval carioca.
A Academia, ao empossar no biênio Martinho da Vila, Sérgio Fonta e Mary Del Priore,robusteceu-se e abriu veredas diversificadas. Graças aos esforços do também recente acadêmicoBernardo Cabral, tivemos o acolhimento do SESC-DN, que acreditou na energia renovadorada ACL e se fez colaborador prioritário. Um pouco antes, o Bradesco assentiu a mais um apelodo confrade Bernardo Cabral, aportando simpático auxílio aos modestos cofres acadêmicos.
Portanto, há que se sublinhar, em letras garrafais de reconhecimento, os nomes dos nossosbenfeitores: o SESC-DN, pela parceria; o Bradesco, pelo patrocínio, e Bernardo Cabral, pelaadesão fraterna.
O conjunto desses aquinhoamentos permitiu a aventura de fazer, de pôr de pé ideias. Assim, foram erguidos e consumados eventos pioneiros, como os Prêmios Lima Barreto, paracontos (2014), João do Rio, para crônicas (2015) e, o maior desafio, o Grande Prêmio Cidadedo Rio de Janeiro, para escritor carioca (conjunto de obras), conferido, em 2014, a CarlosHeitor Cony, materializado em escultura especialmente criada por Dirce de Assis.>
Também gravitaram por nosso Salão Acadêmico as Oficinas de Teatro, Literatura, Poesia,Crítica Literária e Leituras de peças teatrais de autores cariocas, articuladas pelos AcadêmicosMiriam Halfim, Teresa Cristina Meirelles de Oliveira, Adriano Espínola, Sergio Fonta eGodofredo de Oliveira Neto.>
Para integrar a Academia dentro do Comitê Rio-450, diligentemente presidido peloSecretário de Cultura, Marcelo Calero, criamos o projeto Construtores da LiteraturaCarioca, com a honrosa parceria da Fundação Biblioteca Nacional. Um Grande Júri,convocado pela ACL (seus 40 acadêmicos e mais os presidentes da ABL, IHGB, PEN Clube,UBE, e Academia Luso-Brasileira de Letras), além de outros 40 intelectuais escolhidos pelaBiblioteca, elegeu 45 escritores, dos quais os dez mais votados são, por ordem do primeiro para o décimo lugar: Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Nélson Rodrigues,Rubem Braga, Joaquim Manuel de Macedo, Carlos Drummond de Andrade, Viniciusde Moraes, Marques Rebelo e Manuel Antônio de Almeida. Os dez mais, revisitados empalestras promovidas pelas FBN e ACL, merecerão um livro, a partir da condensação dasconferências feitas para cada um dos eleitos.”>
A ACL também instituiu, em 2015, a Comenda da Ordem do Pe. José de Anchieta,que, ao aureolar figuras expressivas da vida carioca, igualmente realça e impõe o patrono daCasa, padre José de Anchieta, um dos fundadores do Rio e seu primeiro cronista, ao lado deEstácio de Sá.>
Portanto, caro leitor, aí estão algumas das realizações e projetos literários e culturais danossa Academia Carioca de Letras, no biênio que culmina com os 450 anos do Rio, cujasedução e argamassa construíram esta Revista-Livro, cuidadosa e pacientemente organizadapelo Acadêmico Paulo Roberto Pereira, nosso Diretor de Publicações.”>
Leia abaixo o ensaio de Ricardo Cravo Albin para o livro “450 Anos do Rio de Janeiro”.
Escolas no Carnaval: Uma Exegese Carioca, por Ricardo Cravo Albin
O carnaval carioca seria muito influenciado em suas origens mais remotas por festas de igrejas como as da Glória, da Penha, da Matriz, e por procissões religiosas, como as de São Jorge, santo de destacada preferência popular, ou mesmo as folias do Divino e até os congos de origem africana. Alguns estudiosos entendem que o primeiro desfile carnavalesco se deu em pleno centro histórico do Rio, na rua Direita (hoje Primeiro de Março), para comemorar a subida ao trono português de El-Rei Dom João V ao comecinho de 1707. A Corte portuguesa era uzeira e vezeira em comemorar com passeatas, desfiles e muita bebedeira acontecimentos como nascimentos, batizados, ou casamentos de seus integrantes, bem como a chegada à cidade de grandes vultos políticos.
Os festejos duravam, quase sempre, até três dias (daí o futuro tríduo momesco) e tinham como características principais uma cenografia específica para cada um dos eventos a ser celebrado. Tanto que arcos e obeliscos eram erguidos, galhardetes e luminárias eram distribuídos por praças, pelas ruas, em frente às igrejas, centro natural de qualquer movimento que envolvesse pequenas ou grandes multidões.
Ora, todos esses elementos de origens tão diversificadas, quando reunidos num futuro, só poderiam resultar em folguedos de proporções monumentais, acimentados no cadinho da mistura das tradições europeias, africanas e indígenas, mistura que de tão criativa chega a ser até despudorada.
Aliás, a forma de cortejo, que a escola de samba levou a uma consequência galvanizadora, vem da religião católica e de suas festas processionais. Tradição fundada na esteira de séculos ou até milênios. A forma da escola de samba é, portanto, muito mais a de uma procissão que a de uma ópera popular, como foi impropriamente chamada. Até porque a escola de samba flui pela rua ao som de música única, enquanto a ópera se desenvolve em palco fixo ao som de músicas várias.
Muitos dizem que Escolas de Samba têm um coração. A origem do coração da escola de samba, que é como em geral os críticos chamam a bateria percussiva, vem de outra tradição primicial e que tomou no Rio o nome de zé-pereira, isso lá por volta de 1850. Era um conjunto de bumbos criado pelo sapateiro português José Paredes, nome cuja corruptela acabou por virar o zé-pereira, e que inaugurou uma forma de carnaval organizado no Rio, capital do Império. O entrudo, diversão grosseira e abusiva da maioria do povo das ruas, se contrapunha aos bailes de máscaras a que só as classes mais privilegiadas ascendiam. Fora do entrudo e longe dos bailes, os blocos de zé-pereiras logo seriam uma outra possibilidade de brincar o carnaval ao som apenas de percussão. Elemento de essência e de vigor que viria a ser agregado às escolas de samba ao começo da década de 1930 do século passado.
Quanto à forma processional de desfile orgânico por uma determinada rua, as escolas têm suas origens mais diretas nos Ranchos Carnavalescos e nas Grandes Sociedades. Essas, anteriormente chamadas de Grandes Clubes Carnavalescos, foram pioneiras na “organização” do carnaval, com sede própria, estatutos e funcionando quase todo o ano com bailes, convescotes e que tais. Elas promoviam no carnaval desfiles pela Rua do Ouvidor (Rio) nas últimas décadas do século XIX, e que agregavam temas, ideias ou críticas sociais e políticas. As Grandes Sociedades (especialmente as três mais famosas, Tenentes do Diabo, Fenianos e Democráticos) contribuíram para causas generosas da época, como a abolicionista, a republicana, ou a defesa do trabalhador. Elas não inspirariam a formação das Escolas apenas nos temas do desfile (o enredo de hoje) ou na organização administrativa (sede própria, estatutos e diretorias com dirigentes diversificados). Foram também responsáveis por uma das essências do desfile das Escolas: os carros alegóricos, forma imbatível de exibir o enredo para muito além do binômio canto e dança. Alguns dos carros alegóricos das Grandes Sociedades foram, segundo observadores insuspeitos como Lima Barreto, João do Rio ou logo depois Marques Rebelo, verdadeiras obras de arte, produzidas por cenógrafos e maquinistas de teatro. Tal como nas escolas de samba a partir dos anos 1960, quando gente de teatro do porte de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues abriu novos campos estéticos para as alegorias e para os carros, que culminariam no desabrochar de carnavalescos criativos e audaciosos como João Trinta, Fernando Pinto, Rosa Magalhães, Max Lopes, Renato Lage e até mesmo Paulo Barros. Este último provocando a inovação arrojada (já no século XXI) dos carros alegóricos montados em cima da coreografia de dezenas de desfilantes.
Não tenho dúvida de que, quanto à estrutura e origens sociais do desfile, as escolas beberiam muito mais da segunda novidade do carnaval carioca logo depois das Grandes Sociedades, nascidas a partir da classe média e dos intelectuais, e que foram os Ranchos. Estes tiveram origens ainda mais populares, incorporando tradições típicas do dia de Reis e de procissões religiosas. Seu criador foi o negro baiano Hilário Jovino Ferreira. Estruturado na Pedra do Sal, próxima ao cais do porto do Rio, o primeiro Rancho “Rei de Ouros” jamais alcançaria no final do século XIX a notoriedade das Grandes Sociedades, acolitadas pela imprensa e por intelectuais de renome como Lima Barreto, que nelas viam as sociedades miscigênicas mais possíveis do esboço tosco e injusto de uma democracia brasileira. Situação que só seria mudada a partir da chegada do Rancho Ameno Resedá em 1908, quando seus criadores inovaram pra valer: saíam com um tema único, distribuídos em alas específicas. Desse modo, o Rancho já desfilava com muitas das estruturas que as Escolas agregariam, a começar pelo Abre-Alas (com a tradicional saudação à imprensa e portando o nome do Rancho). A que se seguia a Comissão de Frente – formada pela diretoria, tal como nas Escolas de Samba ainda há duas dezenas de anos. Nos Ranchos, os desfilantes cantavam e dançavam sob um comando único, o Mestre de Manobra, que era, sem tirar nem pôr, o essencial diretor de harmonia das Escolas. Aliás, entre os mais célebres e temidos – até porque na hora agá de a Escola pisar na avenida eles eram reis absolutistas – estão Xangô da Mangueira, Aniceto do Império e Laíla do Salgueiro.
A bandeira do Rancho era garbosamente conduzida pela porta-estandarte, que se fazia acompanhar pelo baliza, encarregado de cortejá-la, girando em torno dela: são hoje a porta- -bandeira e o mestre-sala das Escolas, possivelmente o mais belo, o mais criativo e mais emocionante fragmento do super desfile de hoje.
O que são as Escolas de Samba
Para mais adequadamente se saber o que as Escolas de Samba significam, torna-se fundamental a percepção do que seja paixão, visceralidade, relação sensual, gozo.
Como não confrontar esses sentimentos de culminância ante uma agremiação carnavalesca à qual todos afluem: 1. espontaneamente; 2. pagando fantasias quase sempre acima das suas posses; 3. submetendo-se a rígidas e por vezes severas, quando não até penosas, normas de prévios ensaios, além da concentração para o desfile, que chega a custar horas a fio?
O mais cativante é que toda a tensão e sofrimentos impostos ao desfilante se liberam durante apenas 80 minutos – o tempo em que a Escola hoje desfila da cabeceira da pista à zona da dispersão. Essa fração de uma hora e vinte minutos em que mais de 3 mil pessoas (podendo ir até o dobro) interagem em comunidade e dentro de um sistema nuclear muito rígido e organizado é um tempo mágico, cheio de interpretações sociológicas, políticas e sociais. Porque a comunidade deve atuar com um só coração, projetando para a plateia uma rigorosa unidade de canto e dança simultâneos.
Popular desde suas origens ao começo da década de 1930, ela se poria de pé com integrantes das camadas mais baixas da estrutura social carioca. Era aquela gente mulata ou negra, sem profissão definida, que veio para o Rio como veteranos livres da Guerra do Paraguai ou aqueles que chegavam à Capital Federal vindos do êxodo das fazendas de café, quando a Princesa Isabel aboliu a escravidão em 1888. Ou mesmo alguns remanescentes da epopeia de Canudos de Antônio Conselheiro na Bahia. A maioria, aliás, acabaria por ocupar as encostas verdejantes do Rio, inaugurando as favelas, fenômeno amargamente avaliado pelo escritor e acadêmico Marques Rebelo como “as flores carnívoras e malcheirosas plantadas por administradores que roçam à estultice e à cegueira.”
O local de nascimento da Escola de Samba foi o centro do Rio, ao sopé do Morro de São Carlos na Cidade Nova e no Estácio de Sá – vizinhos à Lapa boêmia e à Praça XI antiga, celeiros de sambas e de bambas.
Um grupo de negros e mulatos boêmios que viviam de pequenos biscates dedicava-se com fervor ao violão, ao pandeiro, a fazer batucadas. Ou a fazer… absolutamente nada. Quando não rodas de samba, gênero que nascera há menos de dez anos. Ismael Silva, autor da maravilha que é Se você jurar (com Nilton Bastos) e coautor de doze pepitas com Noel Rosa, liderava o grupo a que se somavam malandros históricos como Brancura e compositores não menos importantes como a dupla Bide e Marçal (do clássico Agora é cinza). O próprio Ismael (com quem convivi meses a fio ao lhe escrever e dirigir o show autobiográfico “Se você jurar”) me disse que o termo “Escola de Samba” foi inventado por ele devido a três razões. A primeira – e a menos importante – porque a turma do Estácio se reunia quase em frente à Escola Normal, situada na esquina da rua Machado Coelho com a rua Joaquim Palhares. A segunda razão – de importância bem maior – era o fato de, ao se intitularem de Escola de Samba, deferiam a si mesmos a graduação de bambas, de mestres, de professores na arte de produzir e acarinhar sambas. O terceiro motivo – o mais relevante de todos – era que o termo Escola de Samba qualificaria uma possível melhoria e ascendência lítero-social em relação aos demais blocos carnavalescos, seus concorrentes. Ismael ainda chamaria a atenção para o fato de que ele intitulou o seu bloco, já portando o nome de Escola de Samba, de Deixa falar. Como se previsse críticas dos outros blocos, alguns dos quais bem conceituados como o Fiquei Firme (do morro da Favela), o Vai-como-pode (de Oswaldo Cruz, depois a Escola de Samba Portela, mas só a partir de 1935) e o Arengueiro (da região do morro da Mangueira, depois a Estação Primeira da Mangueira).
Claro que os desafiantes do Estácio tinham a intenção de fazer algo melhor que os demais concorrentes. Mas a intenção logo se esvairia, porque sua turma, segundo o doce Ismael me confidenciaria em espichadas conversas, era mesmo de “fritar bolinhos…” Eles queriam fazer samba, namorar, cantar. Viver a vida boêmia, enfim, mas sem a responsabilidade incômoda de ter que suar camisa para a Escola de Samba Deixa Falar derrotar as concorrentes. Até porque, em seus três desfiles públicos (29, 30 e 31), a Deixa Falar não inventou as novidades que qualificariam logo depois as futuras Escolas de Samba. Uma vantagem eles tinham: os sambas que cantavam eram perfeitas joias da música urbana carioca como Se você jurar, que (e aí vai um segredinho soprado pelo Ismael – foi quase todo feito por Nilton Bastos, mas acabado por ele) teria sido cantado no desfile de 1930, e logo gravado por Chico Alves e Mário Reis em dupla, também na derradeira aparição da Deixa Falar, em 1931.
Ao sair de cena a pioneira agremiação carnavalesca de Ismael Silva e sua Turma do Estácio, as Escolas de Samba, aí sim, instalam-se de vez. Muitos dos blocos vestiram o novo nome e as inovações começaram a se fazer sentir. Inicialmente, as Escolas se apresentavam na Praça XI, uma das catedrais mais estimadas dos folguedos dos negros no Rio, inclusive de onde saíram os primeiros blocos logo depois da abolição da escravidão. Ali, cenas de sangue e de desordem não eram raras. Uma das razões, de resto, de a polícia em décadas subsequentes perseguir rodas de batuque e, logo depois, as de samba, identificando-as como “coisas de arruaceiros, de capadócios e de perturbadores da ordem pública”, segundo cronistas como João do Rio, ou mesmo Jotaefegê, Edison Carneiro e Eneida no Conselho Superior de Música do Museu da Imagem e do Som, que eu presidia a partir de 1965.
A partir do comecinho da década de 1930, os desfiles iniciais das escolas na Praça XI eram espontâneos, e reuniam apenas algumas dezenas de pessoas. Em 1932, o jornal Mundo Esportivo patrocinou o primeiro desfile das então muito acanhadas agremiações. Foi um estopim.
Porque já em 1933 – enquanto a era do rádio consolidava a efervescência dos sambas e das marchinhas carnavalescas – o desfile das Escolas, ainda tímido, passou a ser patrocinado pelo jornal O Globo. Disputando com quase duas dezenas de concorrentes, a Estação Primeira da Mangueira, de Cartola, de Carlos Cachaça e de outros bambas como José Espinguela, foi a campeã dos desfiles iniciais – inaugurando toda uma longa marcha de glórias. Até porque seu mito e sua história salpicam paixões irrefreáveis até os dias de hoje. De gente do porte de Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Carlos Jobim, Braguinha ou Chico Buarque. Todos homenageados em vida, em desfiles memoráveis.
Mas – vale a pena repetir – quando as Escolas começaram a aparecer, os desfiles de carnaval nas ruas eram então liderados pelas Grandes Sociedades, a que se seguiam os Ranchos e Blocos. As Escolas, em fase ascensional, embora desprezadas pela classe média carioca, receberam em 1934 um convite do jornal O Paiz que as elevaria ao pódio da excelência das organizações carnavalescas. Foi um desfile em homenagem ao prefeito Pedro Ernesto, no Campo de Santana, local nobilíssimo dos festejos de rua ao longo de quase todo o século XIX e parte do século XVIII.
Mais uma vez a Mangueira foi campeã. A Estação Primeira no mesmo ano assinaria – em posição de destaque – a novidade que assegurava a consolidação das Escolas: o primeiro pacto entre elas, que tomou o nome de União das Escolas de Samba.
Como resultado desse passo definidor de organização, o desfile das Escolas logo (no ano seguinte) seria oficializado pela Prefeitura do Distrito Federal, impondo a elas um regulamento com normas que, a ferro e fogo, determinariam os rumos do desfile. Forjava-se, a partir daí, embora lentamente, o apogeu das Escolas, que culminaria no Sambódromo Darcy Ribeiro, projetado por Oscar Niemeyer e saído da cabeça fulgurante de Darcy.
Da corda clássica – que separava o público dos desfilantes nos tempos heroicos da Praça XI – até aos camarotes de luxo de agora, foi árdua a caminhada. Das cores únicas (duas, quase sempre) com que cada Escola desfilava, ao arco-íris de hoje, em que ao carnavalesco mais ousado é consentido empregar todas as cores e suas variações, a estética visual das Escolas mudou tão drasticamente que muitos críticos já perfilam o termo “ditadura do visual”, em detrimento da “dança no pé e canto no gogó”, binômio de essência cunhado pelo cronista Rubem Braga.
Os ternos brancos bem comportados que os sambistas exibiam com orgulho nos anos 1930 – que se antepunham ao despojamento do vestir diário, quando envergavam camisas listradas, calças de brim e chinelo “charlotte” – não deixavam de ser uma fantasia de doutor para ocupar pé e pescoço (tradução do malandrês: sapato fechado e gravata). Muito diferente das roupas de agora, com alegorias entupindo pés, mãos, cabeça. Mas, apesar das mudanças, ficaria mantida, felizmente, a inversão da estrutura social tão cara ao carnaval. E, é claro, tão necessária como descompressão para os sambistas, senhores absolutistas da organização de milhares de pessoas e titulares da beleza, da exceção, da originalidade, do vigoroso comando organizacional em uma hora e pouco de desfile, onde uma magia embriagadora afoga um ano de miséria, de humilhação, de sensaboria…
Nas décadas de 1930 e 1940, o verde-rosa da Mangueira de Cartola e o azul e branco da Portela de Heitor dos Prazeres (o Mano Lino) e de Paulo da Portela (o Paulo Benjamim de Oliveira, que exerceu uma liderança historicamente robusta, injetando na organização do samba alguns traços da ideologia de Prestes, então em franca disputa com Getúlio) alternavam-se absolutos na disputa do primeiro lugar, enquanto suas concorrentes (Unidos da Tijuca, Vizinha faladeira, Depois eu digo, ou Fique firme, para citar apenas algumas), nunca conquistaram qualquer campeonato, à exceção da primeira (Unidos da Tijuca), campeã solitária de 1936.
A primazia da Mangueira e da Portela só seria quebrada pela Império Serrano, fundada em 1947 (no sopé do Morro da Serrinha, Madureira) e que conquistaria sensacionalmente o tetracampeonato de 1948 até 1952, trazendo como joias de sua Coroa Imperial Verde e Branca compositores como Mano Décio da Viola, Dona Ivone Lara (primeira mulher a fazer samba enredo, uma Chiquinha Gonzaga das Escolas) ou Silas de Oliveira (autor de pelo menos dois dos mais saudados sambas de enredo de todos os tempos, Aquarela brasileira e Heróis da liberdade – que embute o verso considerado genial por Carlos Drummond de Andrade em 1968, plena truculência da censura pela ditadura: “Essa brisa que a juventude afaga / Essa chama que o ódio não apaga”.
Os anos 1940 e 1950 foram um tempo em que as Escolas absorveriam uma identidade formal bem mais definida do que a do heroísmo da década de 1930, agregando aqui ou acolá referências dos Ranchos e, sobretudo, das Grandes Sociedades.
O “pulo do gato”, a ruptura, a grande novidade para as Escolas, contudo, chegariam ao final dos anos 1950. Quando o Brasil pulsava ao ritmo da Era JK. Quando Brasília se destacava como a ousadia urbanístico-arquitetônica mais flamejante do planeta. Quando a Bossa Nova descerraria cortinas musicais para novos músicos, jovens talentos universitários. Quando “uma câmara na mão e uma ideia na cabeça” faziam irromper a criatividade insolente do Cinema Novo. Quando, enfim, a esperança e a fé em destinos mais estimulantes sacudiam as consciências críticas dos brasileiros que não só pensavam o país, mas também as daqueles que queriam mudá-lo.
O começo dos anos 1960, portanto, decretaria a morte paulatina nas Escolas de Samba de uma estética suburbana e popular, e o nascimento irresistível de uma outra, a universitária e jovem. Os embates e os debates ante as estéticas novas, como sempre, deram panos para a manga, e fizeram provocar discussões ideológicas, estéticas, sensoriais.
Assim acontecera com a chegada dos músicos da Bossa Nova, dos cineastas do Cinema Novo, da Capital Nova. O mesmo se passaria com a adaptação paulatina dos novos padrões estético-conjunturais das Escolas.
Hoje, o desfile do Grupo Especial das Escolas de Samba do Rio é um megaespetáculo de arte que encanta o Brasil e o mundo. A cidade do Rio, especialmente ela, que viu nascer essas agremiações do povo carioca de modo tão modesto, beneficia-se direta e indiretamente dos milhões de reais que o show faz movimentar.
A criação de milhares de empregos, ao longo de quase um ano todo de trabalhos, faz agregar gerações e gerações de profissionais autônomos ou artesões. E ainda artistas altamente especializados como pintores ou escultores em papel, espuma ou gesso. Em torno das Escolas gravitam pequenas indústrias ao até cooperativas de aderecistas, costureiras, bordadeiras, chapeleiros, além de batalhões de ferreiros, eletricistas ou marceneiros… Em resumo, uma indústria, uma rara indústria, a serviço de um resultado exclusivamente de arte, de comportamento estético, de compromisso com o belo.
Eu ousaria considerar que a finalidade última desse esforço coletivo, sem paralelos em qualquer outro espetáculo, pode significar uma reflexão robusta, até audaciosa, sobre a superioridade de o povo brasileiro criar mecanismos que provocam o que o ser humano e as civilizações perseguem e buscam, desde tempos imemoriais: a felicidade.
Ou, como observou o filósofo e sociólogo contemporâneo Michel Massefolli, “a ascensão dos sentidos principais do ser humano que podem conduzir ao Paraíso”, em ensaio acadêmico recente sobre a exegese do milagre das Escolas de Samba.
RICARDO CRAVO ALBIN é escritor, ensaísta, autor e apresentador, durante 35 anos, de programas culturais na Rádio MEC. Formado em Direito pela Universidade do Brasil, foi o estruturador do Museu da Imagem e do Som, cujo modelo, por ele firmado, foi implantado com sua supervisão direta em 17 capitais do país. Foi presidente do Instituto Nacional do Cinema e da Embrafilme, e ainda professor de Cultura Contemporânea da Escola Nacional de Artes da UFRJ. Com 13 livros editados, sua obra principal é o Dicionário Cravo Albin da MPB, online e com edição impressa pelos Institutos Houaiss e Cravo Albin. É também diplomado pela Universidade de Nova York em Direito Comparado e Doutor Honoris Causa pela Universidade Constantin Brancusi, da Romênia. É Presidente da Academia Carioca de Letras – ocupante da cadeira 34.
Conheça abaixo, com exclusividade, a íntegra do livro 450 Anos do Rio de Janeiro, editado pela Academia Carioca de Letras, para encerrar os festejos de 2015, celebrando o aniversário da cidade.