A falta de continuidade nos usos e costumes de uma cidade ou a quebra de rotinas que detêm hábitos consolidados são eventos que penalizam o cidadão e empobrecem o núcleo urbano.
Eu, por exemplo, sempre me afligi com a fuga de pontos de referência. Quaisquer que sejam. Porque, confesso, me habita um leque de desolações acumuladas, que vão de um bar de estima desativado ou até a falta de um bolinho de bacalhau, que sempre se fez indispensável às papilas durante anos a fio. Mas essas aflições quase confessionais são desprezíveis ante aos horrores que corroem a alma da cidade, como a quebra do gabarito – que infelicitou toda a orla carioca. Ou o descuido macabro dos governantes imbecilizados que não cuidaram das águas da Baia e das lagoas.
Há anos (décadas, para ser preciso) denuncio publicamente o olhar vesgo dos prefeitos que penalizam a Avenida Atlântica com o chamado “Réveillon Mega”, uma nesga de areia + asfalto sem infraestrutura de transporte, banheiros, ordenação urbana. Enquanto isso… abandona-se olimpicamente o interior da Baia entre as orlas de duas cidades – com a perfeição da Ponte para uma cascata ideal de fogos. Também se despreza o espelho d’água da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ambos, de certo, dotados de muitíssimos mais confortos e facilidades.
O que me interessa aqui é mugir um ai nostálgico de saudade pela perda do Réveillon da Atlântica, quando as areias – despidas dos horrendos mafuás de hoje – abrigavam apenas centenas de milhares de velas, luzezinhas tênues e delicadas que saudavam o Ano Novo e embalavam a doçura da fé. Fé na divindade, fé no ardor da esperança, fé no silêncio, apenas quebrado, aqui ou acolá, por discretas queimas de fogos. Aos milhares de velas somavam-se flores brancas, uma profusão de palmas de Santa Rita e de rosas ofertadas à Iemanjá. Uma divindade elástica e democrática para abrigar, em síntese ecumênica, o desejo de felicidade.
Quando me mudei para a Urca, debruçado sobre a prainha, pude experimentar a volta do ponto de referência que era a Atlântica na noite de 31. Voltara a festa da fé e do silêncio, alimentados pelos cânticos em devoção ao bem e à fraternidade da paz. Sem fogos excessivos, sem gente excessiva, sem bebidas, roubos e desconforto excessivos. Voltaram à Urca os trajes brancos, os cânticos ecumênicos, os atabaques ancestrais. E, sobretudo, o bruxuleio insuperável das velas. Além dos barquinhos brancos de Iemanjá em busca das águas da enseada da Baia.
A beleza da discrição e do quase silencio torna as noites pré-Réveillon, na menor praia da Baia, um ato de fraternidade, embora discreto, quase restrito. Mas fixador de um ponto de referencia que se perdeu por nada. Senão para alimentar a grandiloqüência delirante de administradores bregas e demagogos.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do
Instituto Cultural Cravo Albin