Em espaço exíguo de uma semana, nós, os que nos curvamos com paixão frente aos trabalhadores–anjos (como chamo aqueles artistas capazes de irradiar criação e arte), fomos abatidos duplamente. As mortes de Dona Ivone Lara e Nelson Pereira dos Santos me atingiram severamente. Ambos me foram muito próximos ao coração por mais de cinco décadas. E íntimos do meu espírito, do meu gozo estético, do meu querer bem.
Não quero louva-los com firulas criticas, muito menos com a banalidade de louvaminhações patéticas. Desculpem-me, mas me apraz liberar aqui pequenas memórias das centenas de diálogos que permearam o afeto pessoal (e vital) entre mim e eles. Eis algumas:
Ivone (no Museu de Imagem e do Som, 1967) – “olha, meu nobre, se você insiste em me chamar de Dona Ivone eu insisto em chama-lo de Doutor Diretor. Não esqueça seu pedido para eu falar tudo bem clarinho no depoimento. Como é que vou me sentir à vontade te tratando de doutor, tal como eu trato os médicos de minha enfermaria. Aqui não quero ser enfermeira. Quero ser apenas a compositora do meu Império.”.
Nelson (no gabinete da Embrafilme e do INC – 1970) – “ O diabo é que a censura proibiu o “Como era gostoso meus francês” por conta dos paus balançantes dos índios. Mulher pelada eles até deixaram, mas nu frontal masculino, eles acham pornografia. Agora, sua ideia de levar o filme para Cannes e exibi-lo como hors-concours pode ser mesmo… do caralho.”
Nelson gargalhou com seu chiste, olhos iluminados de felicidade. Ao lado, David Neves e Humberto Mauro repetiram a uma só voz o quase bordão … “ do caralho, do caralho.” O filme fez furor no Festival de Cannes. E a censura dos nossos índios botocudos daqui se viu pressionada a liberar a obra-prima de Nelson.
Ivone (minutos antes de o show começar, sua quase despedida no antigo Metropolitan, já transportada em cadeira de rodas para o palco) – “ Ricardo, você que vai narrar o espetáculo evite falar demais de mim. Eu ando muito emotiva, meu filho, e os elogios bolem comigo lá dentro. Eles me fazem o efeito de trovões”. – “Pode deixar, Ivone, vou tentar segurar minha emoção”. Lá pelas tantas, em cena aberta, me sentei na beirada da cadeira dela. E lhe cochichei que estava quase caindo no palco. Por emoção não controlada. Ela enlaçou minha mão até o final do show. Ambos sentados. Eu, mais calmo.
Nelson (na UFF, em sua sala de diretor do curso de cinema criado por ele, em 1971) – “Quero que você veja a pobreza em que o curso e meus alunos vivemos. Falta tudo, o básico para ensinar cinema, até câmeras”. Quinze dias depois Nelson me telefona” – Você esta doido? Chegou este material todo aqui para as aulas. Vão dizer que eu roubei”.
“- Não, Nelson, terão que dizer que fui eu quem roubou da Embrafilme. Assumo com orgulho equipar sua escola.”.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do
Instituto Cultural Cravo Albin