“Glauber Rocha resplandecerá para todo sempre” C. D. de Andrade
Quem acompanha a atualidade buscando matérias para crônicas e artigos muitas vezes toma sustos. Agora mesmo, acabo de rever (pela oitava vez) “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha. E sempre sou surpreendido pela contundente atualidade e superior qualidade do filme. Confesso que fiquei um tanto confuso ao rever a data de seu lançamento, 1964! Meu Deus! Esta obra prima do cinema, uma quase pioneira exibição mundial de um Brasil de cangaceiros, de violências e desigualdades cumpre agora 60 anos. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é o filme que fez fincar os pés do Cinema Novo do Brasil no mundo inteiro.
Diria até que esta joia do cinema foi além: redescobriu o próprio cinema e pariu Glauber, o personagem mais inventivo e inquieto das perplexidades e insatisfações daqueles turbulentos anos 60, 70 e 80. Um gênio rebelde, mas nada dissipado, de resto, de uma realidade, bem ao contrário do escritor beatnik Charles Bukowski, a quem um crítico de São Paulo há anos comparou a Glauber, de maneira tão inadequada quanto até despropositada.
Aliás, quem conviveu, como eu, com o verdor dos vinte um anos de Glauber – nas noites sem fim do velho Café Lamas no Largo do Machado jamais se esquecerá do gênio que nascia.
Glauber pontificava, despejando pela boca (de lábios carnudos e perfeitos) golfadas de originalidade e de indignação criativa. E não apenas definia ali, na mistura insensata de cerveja e uísque, o futuro do seu cinema e de seus personagens. Ele apontava para nós, todos muito jovens, embevecidos por seus discursos veementes e barrocos – o caminho de um Brasil mais honrado, mais justo e mais solidário. A luta proposta era a luta do bem contra o mal, do santo (guerreiro, se possível) contra o dragão da maldade (da desigualdade).
Madrugada alta, depois de salvarmos o mundo como convinha aos nossos dezoito e vinte anos, era inevitável acabarmos em samba. Glauber – admirador de Noel Rosa – encerrava a noite aos berros com o refrão desafinado de “Coisas nossas “O samba, a prontidão e outras bossas/são nossas coisas, são coisas nossas.” E discursava dedo em riste: “Noel Rosa é quem tem mesmo razão. Mas nós vamos mudar isso.”
Depois, já maduro e no exterior, sofrendo a suprema das penalidades que é o exílio, Glauber me confidenciaria em voz baixa, mas com os olhos mais brilhantes que nunca: “Olha, a luta do bem contra o mal continua, é claro, é claro. Mas a gente tem que encontrar emissários que negociem entre os dois. Porque, meu querido, de santos guerreiros, mortos e inúteis, eu estou farto”.
Talvez estribado nessa reflexão, Glauber tivesse amadurecido não só sua volta do exílio, mas o surpreendente episódio do apoio ao General Golbery do Couto e Silva. Que causou tanta polêmica ao alvorecer da abertura política e provocou críticas ácidas. A que Glauber respondeu com uma quase exclamação, seca e malcriada: “Ora, são uns babacas!”
Escrevo aqui porque preservo em detalhes amorosos no meu coração um Glauber em fragmentos muito convincentes e bem montados. Aquele Glauber da inesquecível exposição comemorativa dos trinta anos de Deus e o Diabo na Terra do Sol, no Centro Cultural do Banco do Brasil: lá estavam alguns desenhos (feitos pelo puro prazer e sem pretensões de obra gráfica), entre eles uma comovente caricatura dos seus companheiros de prisão em 1964 (Cony, Joaquim Pedro, Marcito, Flávio Rangel e um delicioso Callado de óculos), além de um sem-número de cristos obsessivos e pungentes.
Recordo-me ainda, e emcionado, do abraço dado à minha querida amiga Lúcia Rocha (mãe de Glauber) a cuja força e persistência de mãe-leoa se deveu todo o Acervo Glauber que estava a perigo. Ao meu elogio Lúcia se saiu com uma joia glauberiana: “Olha, meu filho, eu não fiz nada. Mas, por outro lado, eu fiz tudo”. Glauber certamente resplandeceria, nessa síntese exata de contradição e de verdade. A propósito, não foi mesmo sem razão que Gilberto Amado pouco dado a incensar talentos insolentes e ainda por cima vaidosos me declarou ao final de um longo almoço, no seu belo apartamento das Laranjeiras, em que o provoquei sobre os jovens intelectuais do Brasil nos anos 60/70: “Esse seu amigo Glauber Rocha, por exemplo, é de um arrebatamento a que só os santos em sua candura podem se alçar. E de um talento tão faiscante e ígneo que só os demônios em sua fogueira – podem polir”.
Ricardo Cravo Albin
25 de março de 2024