– Mas você bate sempre na mesma tecla, sua ladainha da memória é um samba de uma nota só. Precisa tanto?
– É isso mesmo, mas esta nota só não sou eu. A nota só, e desgraçadamente, é a falta de pudor com a preservação da memória. Entra ano, sai ano, a gente vê se perderem coisas, e nomes, e referências…
Este diálogo quase absurdo ocorreu quando dava uma aula-magna na USP. E é claro que não me constrangeu um minuto sequer. Ao contrário, exultei com a pergunta do aluno de jornalismo, de aparência afoita e rebelde. Desfiei, de imediato, regalado e suspiroso, todo um novelo sombrio do que comprovei ao longo da direção no Museu da Imagem e do Som, em seu então mais tenro início de consolidação, a partir de 1965. Quanto mais os depoimentos para a posteridade exumavam memórias e feitos, mais pessoas me procuravam para denunciar nomes esquecidos, destruições, ou mal tratos à coleções por parte de herdeiros desrespeitosos, ou até infames. Muitos velhinhos batiam à porta do Museu para doar livros, discos, fotos, filmes, clamando uma súplica devastadora: “vai me doer o coração ver tudo que juntei por tantos anos ir para o lixo, quando eu me for.” Os gemidos, as queixas, o desamparo, a certeza da destruição, eram definidoras do nenhum cuidado com a memória. Tanto por parte do poder público quanto – o muitíssimo pior – a partir de herdeiros malsãos. Esta trágica comprovação nunca se sustou – acreditem – em um único ano de minha espichada vida pública de mais de cinco décadas. E não falo de bens materiais tão somente. Flagelam minha alma os esquecimentos de memórias imateriais: fatos históricos, culturais, ou pessoas que ajudaram a construir o país. Que puderam fazer todos nós mais felizes e orgulhos por algumas gerações. Este o caso dos artistas. Em especial os que afinaram a arte da música. Isso para citar apenas – até temerária e parcialmente – os nossos cantores, músicos e compositores. Este povo irradiador da beleza do som é vítima mais constante do esquecimento. Juro a vocês que a cada mês anoto os esquecidos. E, taciturno, vocifero baixinho, para mim mesmo, o quanto perde o país em decência ao jogar embaixo do tapete gente que sempre valeu e valerá a pena.
E para não dizer que não falei das flores: nestes dias próximos de outubro temos a obrigação de celebrar duas datas queridíssima , os 80 anos de Roberto Menescal e de Joel do Bandolim . Roberto é o ícone da Bossa Nova , o movimento renovador da cultura musical deste país . Um musico que desfruta de grande fama até no Japao . Joel é puro fundamento da tradição herdada de Nazareth, Jacob do Bandolim , Pixinguinha , Radames Gnattali . Aceito todas as sugestões e cobranças que vierem para melhor celebrar-lhes as obras , as vidas , as importâncias , ou seja , tudo o que este país desatento deve a ambos .
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Instituto
Cultural Cravo Albin