Mesa Redonda coordenada por Domício Proença Filho, próximo presidente da Academia Brasileira de Brasil, intitulada “Brasil, Brasis” composta por:
Ricardo Cravo Albin
Arnaldo Nieskier
Martinho da Vila
Confira a seguir a palestra de Ricardo Cravo Albin:
Música e Educação
Minha comunicação privilegia aqui Música e Educação em um sentido restrito e, quero crer, original. Trata-se da inserção da música popular nas escolas de ensino médio, a partir da história e do desenvolvimento da música, desde suas origens, até a contemporaneidade, vária e heterogênea. Esta possibilidade permite a visita aos grandes nomes que construíram a música no Brasil e aos seus gêneros tão diversificados, sempre arraigados à alma do povo. O que provoca uma correlação imediata e transversal com poesia, história, geografias musicais. Além de avaliar originalidades obrigatórias como miscigenação, liberdade de expressão, orgulho racial, e afirmação de não preconceito, em relação ao comportamento sociológico das origens do povo deste país.
Discute-se muito – e por décadas a fio – a estratégia de incutir, dentro da cadeia do ensino elementar e secundário, mecanismos de otimização de idéias pedagógicas mais atraentes, de possibilidade de provocar o interesse nos bancos escolares. Estes estímulos, aplicados dentro da realidade pouco eficaz da estrutura pedagógica de nossa atualidade, quase em crise, podem, e devem, testemunhar a necessidade de inovação extra-curricular. Até porque, torna-se dispensável analisar aqui a deficiência, já crônica, do conceito interligado das matérias que são ministradas aos alunos. O mundo mudou, a realidade da vida cotidiana trespassou as fronteiras, quase assustadoras, daquilo que se convencionou ser chamado de “Transversalidade de impulsos do contemporâneo”. Estes impulsos, que a criança acumula no dia a dia, devem, ou podem, ser indutores do que aplicar aos alunos nas salas de aula. Com mais criatividade, com mecanismos robustos que interfiram na sensaboria do que lhes é imposto.
A criança precisa ser sensibilizada para o mundo das surpresas, do inesperado, porque é pelo órgão da audição que ela possui o contato com os fenômenos sonoros, como a música.
Anísio Teixeira destaca que tudo o que for ligado à música é um importante fator na aprendizagem, porque a criança, desde pequena, já ouve música, muitas vezes a cantada pela mãe ao dormir, conhecida como cantiga de ninar. Aliás, esta é uma coleção de músicas que se acopla ao cancioneiro folclórico, aquele transmitido de geração, e sem titularização autoral. Muitas destas cantigas têm origens ancestrais, até medievais, sempre mescladas pela multiracionalidade do Brasil. Além, é claro de sua finalidade mais nobre, a de acalentar um ser na mais tenra e perigosa das idades.
Darcy Ribeiro ao observar com vagar as crianças indígenas, os curumins, sublinhou que “a música e a dança permitem a expressão pelo gesto e pelo movimento, que traz satisfação e alegria. A criança aprende a se desenvolver através dela. E a elas fica ligada para sempre”. Portanto, a expressão musical desempenha papel de essência no ciclo recreativo. E certamente também na apreensão do ato de viver e de morrer, de gostar ou desprezar. De assentir ou de repudiar. Ao mesmo tempo em que desenvolve sua criatividade, promove-se igualmente a autodisciplina, e desperta a consciência de afirmação do próprio país e de seus acúmulos.
A história da música, já que sempre esteve presente não sistematicamente na vida dos seres humanos, também deveria ser usada, sistematicamente, na escola, para dar outras repercussões ao ambiente escolar, e favorecer a cumplicidade desejada entre sala de aula e o aluno.
Numa súmula para abrir estas minhas considerações genéricas, daquilo do que entendo ser uma preocupante realidade de vácuo de criatividade, e de estímulos praticamente nulos, que poderiam e deveriam ser urgentes e corajosamente mudados, cabe-me apresentar, mas não em termos acadêmicos, de reflexões apenas teóricas, uma possibilidade prática e original de introjetar, nesta deficiência escolar de hoje, um mecanismo de atratividade singular, de originalidade provocadora. Uma possibilidade – é claro – não necessariamente redentora – que esta não existe, e sempre repousou no ideário dos insanos, de mentes deslizantes e caricaturais como a de Policarpo Quaresma, o soberbo personagem de Lima Barreto.
A nossa proposta é escoltada por uma simplicidade estrutural, mas alimentada por estímulos ancestrais. São aqueles que perfilam a história da música popular, do canto do povo, da alma concentrada e grávida de históricos acúmulos de música, ouvida por todos, desde o berço até sempre. Aliás o pêndulo de fundamentalidade da canção popular nos dias de hoje está sempre fixado nas várias edições do ENEM. Ainda ontem o Globo se referia ao exame deste fim de semana, quando o samba Yaô, de Pixinguinha, foi usado em um tópico que abordava a língua no âmbito das tradições africanas no país. Também o nosso essencial Chico Buarque apareceu mais uma vez nas provas de 2015. A letra da canção “Esta pequena” foi usada em uma questão sobre o uso coloquial do idioma como forma de aproximar o leitor de determinada mensagem.
Em anos anteriores, muitas outras letras de reconhecimento público da música foram alinhadas nas provas, como “A dois passos do paraíso”, da banda Blitz, quando os alunos foram solicitados a relacionar texto da música a um outro texto de linguagem radiofônica. Ou ainda na prova de Ciências Humanas, quando a canção Disneylândia, de Arnaldo Antunes, deveria ser relacionada ao contexto internacional de referências de lugares de divertimento.
O Instituto Cravo Albin desenvolveu um mecanismo sofisticado, ao longo de acuradas pesquisas, que custaram três anos de intercomunicações e integração entre a poderosa fonte primicial, as origens da história da música popular, através de seus principais autores (compositores, intérpretes, músicos e gêneros musicais), e através de suas repercussões transversais, como a miscigenação obrigatória (e redentora) do país, com sua história factual. E mais ainda com sua lírica e poesias populares. Com o orgulho necessário das fontes raciais do povo. Com origens e repercussões no pensar, no proceder, no temperamento, enfim, do indivíduo brasileiro. Ou seja, a história da evolução da música cantada. A exercitada dentro de um país de dimensões continentais e necessariamente fértil, mas que sempre forneceu retrato estratificado, e rigorosamente pétreo, das raízes sociológicas do nosso povo.
A transposição do material e conteúdo deste Projeto, através da Internet, e a ampliação do seu escopo, enfocando os contextos regionais do país, tem como justificativa maior despertar o interesse da comunidade escolar (alunos e professores) para a história, os personagens (compositores e intérpretes) e os diferentes gêneros da nossa música, de modo acessível e amplo, atingindo um maior número de brasileiros em sua fase de formação.
O nosso projeto intitulado MPB nas Escolas vem sendo disseminado pelas prefeituras do Estado do Rio de Janeiro junto às escolas de ensino elementar e médio, com aproveitamento surpreendente. As etapas pontuais da história da MPB se concentram em seis cortes verticais, ou segmentos, em que nossa equipe pedagógica de professores-doutores da UFRJ dividiu a história da música: formação e estruturação do cancioneiro, Choro, Samba, Música Regional, Bossa Nova, os Festivais e suas seqüências estéticas, até a contemporaneidade. Uma pasta-escolar, aplicada em cada sala de aula, abriga em cada um de seus cortes, seis livretos, seis cartazes, seis DVDs e seis CDs, com músicas de essência (e suas respectivas letras) de cada segmento.
E falando em pasta escolar, acodem-me agora mesmo a lembrança de duas músicas que remetem, com graça e picardia, ao aprendizagem explícito do ABC escolar.
A E I O U“A E I O U dabliu, dabliu
na cartilha da Juju, Juju
A Juju já sabe ler, a Juju sabe
Há dez anos na cartilha escrever
A Juju já sabe ler, sabe escrever
Escreve sal com c sedilha
Sabe História Natural
Mas não sabe Geografia
Pois com um cabose atracando
Na bacia navegando
Foi pra Asia e
Teve a-zia”.
ABC do SertãoLá no meu sertão
Pros caboclo ler
Tem que aprender um outro ABC
O J e Gi, o L é Lê
O S é si, mas o R tem nome de rê
Na escola é engraçado, ouvir-se tanto ê
A, bê, cê, dê
Fê, quê, lê, mê
Nê, pê, quê, rê
Tê, vê e zê
Na nossa pasta escolar MPB nas Escolas, os exercícios se intercalam e se intercomunicam. Como por exemplo, as fontes negras e sua situação histórica, que determinam a formação do samba ao começo do século XX, na zona mais pobre do Rio, pelos ex-escravos tornados livres em 1888. Aqui, analisam-se tanto a queda da monarquia, apenas alimentada por saraus de música importada e pelo piano quanto o imediato aparecimento público da manifestação musical dos negros nos espaços mais pobres do Rio. Ou seja, desde a fundação do samba com Pelo Telefone do Donga até às culminâncias poéticas de Noel Rosa, ou Cartola, ou Martinho. E assim, sucessivamente, vai se desvendando a história do Brasil dentro de cada corte da história da evolução e fixação da música, em cada década.
Cito, por curiosidade, a atualidade um tanto recente do último dos nossos seis segmentos, os Festivais de MPB nos anos 60-70. Que investiga a censura imposta à criação popular, quando permite exercícios estimulantes com músicas como Cálice (de Chico e Gil) ou como Para não dizer que não falei de flores (de Vandré). No corte Bossa Nova estuda-se a internacionalização do cancioneiro, através da audácia antecipadora de João Gilberto, Tom ou Vinícius de Moraes. No segmento música regional as provocações vão do pioneiro Catulo da Paixão Cearense à opulência de Luiz Gonzaga ou de uma diva do porte de Inezita Barroso, chegando até a inconseqüência e chulices, como Tiririca ou a maioria dos chamados sertanejos pop.
A história da música, como qualquer outra arte de narração, acompanha o desenvolvimento de uma nação, e isso pode se observar ao analisar as épocas brasileiras, porque, em cada uma, a música está sempre presente. E sempre fez a alegria e o prazer do povo, marcando-lhe a essencialidade da alma, tanto sensual quanto ingênua.
É necessário que os professores se reconheçam como sujeitos mediadores de cultura, uma cultura não banal e não monocromática, dentro do processo educativo. E que levem em conta a importância do aprendizado das artes no desenvolvimento e formação das crianças como indivíduos produtores e reprodutores de cultura. Só assim poderão procurar e reconhecer todos os meios que têm em mãos para criar, à sua maneira, situações de aprendizagem que dêem condições a elas de construir conhecimento fora do currículo tradicional. Ou seja, um ensino mais estimulante, mais dedicado às indagações do cotidiano. E nada melhor que a música para bem acolher estas inquietações. Um ensino menos esquálido, no contexto da crise educacional de agora, menos insosso no convencional em que está estratificado. Em resumo, mais sedutor e diversificado, para aplacar a justa ira do desinteresse e da canônica burocracia, que propulsionam a grave tragédia, sobretudo nas áreas mais pobres, da evasão escolar. Um câncer aflitivo. Que corroe a própria nacionalidade.
Presidente do
Instituto Cultural Cravo Albin