“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.” (Darcy Ribeiro)
Recebi há meses consulta muito intrigante de antigos alunos meus da Universidade de Nova York. Havia citado como objeto de estudo para melhor se reconhecer o Brasil dez personalidades com titularidades da alma da nação. Pediram-me que apontasse um único, por escolha pessoal. Darcy Ribeiro, respondi sem titubear. Até por que não só trabalhei com ele como compartilhei de sua intimidade, vizinhos que fomos por muitos anos em Maricá, quando ele esteve casado com Claudinha Zarvos.
Darcy foi a única pessoa que conheci e que teve a audácia – e a sem-vergonhice – de verbalizar o que nenhum intelectual ousou dizer. Bendita sem-vergonhice essa que pode proclamar todos os desejos e sonhos que, como labaredas, incendiavam sua cabeça leonina e fortíssima.
Felizmente – aos céus temos que agradecer – Darcy jamais se preservou de coisa alguma e expos todos seus sonhos, especialmente os mais recônditos. E os menos sensatos, no padrão burguês de juízo.
Quem teve coragem de dizer pela primeira vez que os índios são muito melhores e mais civilizados que todos nós, com a arrogância de nossa violência e com o despudor de bater em nossas mulheres?
Quem teve o topete de proclamar – que este país só se redimiria quando todas as crianças pobres pudessem se alimentar o dia inteiro nas escolas?
Quem teve a audácia de construir em Brasília a Universidade do ano 2000 e, tempos depois, um sambódromo, apenas pela reverência a cultura popular que irrompe das escolas de samba do Rio?
Quem teve a dignidade de proclamar – para escândalo da universidade do Chile – não conhecer o jurista Andrés Bello, que ele afirmou não trocar por um dedinho do poeta Neruda?
Quem teve a fina ironia de gostar tanto de si mesmo, a ponto de julgar-se em condições ético-intelectuais de ser Imperador do Brasil?
Quem teve o bom gosto de proclamar como únicos no mundo Oscar Niemeyer, Clementina de Jesus e a Estação Primeira de Mangueira?
Quem pôde criar originalidades como o arquivo sonoro do Memorial da América Latina ou o Museu do Carnaval nas Ruas do Rio, projetos em que tive a honra de assessorá-lo?
Quem, finalmente, pôde amar o Brasil com tamanha apetência, voracidade e sofreguidão, sendo capaz de indignar-se, mas sempre, é claro, com bom humor e insuperável volúpia de verdade?
Duvido que alguém se candidate a substituí-lo no ato de viver com tamanha coragem e fôlego. Fôlego, aliás, de sete gatos e que o fez driblar a morte por dezenas de vezes.
Cândido Mendes, ao recebê-lo na Academia, afirmou ter encontrado a genealogia de Darcy nas profundezas de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, e na folclórica figura do “Pelintra do Salão”, que tudo resolve, tudo sabe, e que se chafurda sempre em narcisismo delirante e fecundador.
Fui vizinho de Darcy Ribeiro durante anos a fio em Maricá. Testemunhei toda a construção da casa dele, um projeto de Oscar Niemeyer que de tão belo mais parecia uma meia-lua, ou melhor, uma lua nova toda branca que resplandecia frente do areal. Naqueles anos 80, ο areal de Maricá ainda era quase virgem e coberto pela rica vegetação rasteira que lhe dava um encanto todo especial. Infelizmente a falta de proteção das autoridades estaduais e federais, que deveriam preservar tanto a área da restinga quanto o precioso conjunto lacustre, sequestraram de Maricá o encanto original. Um deserto árido se impôs, graças à especulação imobiliária e à cobiça dos dirigentes locais. Vizinhos meus e de Darcy foram, entre os mais queridos, Antônio Callado e Ana Arruda, além de João Saldanha e Raul Ryff, os quais, ateus convictos, levei a participar de uma missa ecológica que promovi na igrejinha da cidade. A missa, na verdade, era um protesto público contra a devastação do nosso paraíso, que já agonizava. De se ver (e quem viu jamais há de se esquecer) as caras dos meus amigos ateus bradando na missa “preces ao senhor” e “oremos” para afastar toda a malignidade dos especuladores, enquanto a cantora Carmen Costa entoava benditos e ladainhas.
Darcy Ribeiro me convidou para trabalhar com ele por três vezes. A primeira foi para supervisionar todos os museus do Rio (1984), a segunda para ser o coordenador dos eventos populares do Estado do Rio (1986) e a terceira, finalmente, para criar o arquivo sonoro do Memorial da América Latina (São Paulo, 1988), para o qual elaborei o Museu das Músicas Populares do Brasil. O Museu do Carnaval foi um projeto que imaginei chamado “Museu do Carnaval nas Ruas” e do qual resultaram duas monumentais exposições de fragmentos das escolas de samba (1985 e 1986) no mezanino da Estação Carioca do Metrô. Lembro-me de que Darcy, ao abrir a exposição de 1986, me abraçou emocionado e discursou: “Esses fragmentos das escolas de samba que aqui estão expostos com essa monumentalidade representam mais para mim que o Museu do Louvre, porque isso é prova provada da solidariedade do povo carioca. Essas são as veias abertas da força criativa não de um, mas de todos”. Grande Darcy…
Ricardo Cravo Albin
7 de março de 2024
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