“A verdadeira medida do homem não está em seu comportamento na zona de conforto, mas sim no tempo das controvérsias. Que tem três lados: o meu, o seu e o correto” (M. Luther King Jr.).
Ou: “Quem é você, que não sabe o que diz, meu Deus do Céu, que palpite infeliz” (Noel Rosa – 1934).
Em muitas conversas telefônicas com amigos estrangeiros, sobretudo americanos, vem sempre à baila a frase quase mítica, o Brasil não é para principiantes.
E com frequência se desenha um quadro incômodo para mim pelo acúmulo de controvérsias, verdades e mentiras por aqui. Tantas as contradições neste ano e meio de governo que passo a enumerar alguns dos itens principais que intrigam os meus americanos, intelectuais e professores universitários.
- Certamente que não pelo espanto do número de óbitos e contaminados pela peste universal, que faz equiparar os dois países. Nesse ponto as contradições de comparação parecem mais claras para meus amigos: eles de imediato enumeram platitudes como extensão territorial, mas se detêm no alinhamento ideológico de Trump e Bolsonaro em questões como negarem a pandemia desde seu início, tendo como resultado imediato a expansão do vírus em todos os estados, de lá e de cá. O remédio milagroso, a cloroquina, defendido com unhas e dentes pelos dois, promoveu ambos ao patamar de curandeiros, com doutorado na Universidade de Gana (rsrsrs), mesmo acentuando que eles nunca tiveram o eleitorado negro nas mãos, ampliando o viés racista, a que também se soma o nacionalismo ferrenho de “Américas para os americanos”, aproximando ambos pelas pontas da autoproclamada extrema direita. O que meus interlocutores não entendem é a acefalia do Ministério da Saúde em plena pandemia, bem como o aparelhamento de milhares de cargos civis por militares. Além da falência dos serviços de boa parte dos hospitais brasileiros, inclusive a falta de equipamentos essenciais. Comentou-se também, para minha vergonha, a corrupção nas compras de respiradores. Logo expliquei ter sido este item uma responsabilidade quase exclusiva de prefeitos, de resto, lá como cá, administradores (desatentos e incultos) para abertura de cidades e escolas em confinamento por rígidos protocolos. Atenção especial, objeto de uma saraivada de piadas, se deveu à resistência inexplicável de ambos os presidentes ao uso de máscaras.
- Outro item a destacar nas conversas foi a luta contra as fake News e suas ramificações dentro do Palácio do Planalto, incluindo filhos do Presidente. Os belicosos apoiadores de Bolsonaro, em exibições públicas pedindo fechamento do Congresso, incluindo a queima de fogos de artifício em cima do STF, escandalizaram meus interlocutores, que sugeriram prisão imediata dos baderneiros, o que Trump faria se esse crime ocorresse contra a Suprema Corte de lá, ou ainda (o inimaginável para eles) ameaças a qualquer casa legislativa. Isso seria quase tão grave quanto o terrorismo de 11 de setembro. E falando em Corte, eles elogiaram muito a independência do STF e pulverizaram com desdém tanto a nomeação de Aras para procurador-geral, rejeitada por seus colegas procuradores, quanto a decisão do juiz João Otávio de Noronha ao liberar personagem polêmico como Patrício Queiroz, e ainda sua esposa foragida. Mais e mais ironias dos colegas de lá, que sugeriram a pronta cassação de Otávio Noronha do STJ e a demissão de Aras.
- Outro item me pareceu a maior preocupação dos americanos: o avanço do desmatamento na Amazônia e as queimadas do Pantanal. Fui forçado a considerar que liberar terras e mineração foram explícitas promessas da campanha presidencial. Cobraram, contudo, e incisivamente, a proteção aos povos indígenas e seus direitos, incluindo assistência hospitalar provocada pela pandemia. Com o que concordei com ardor.
- Mais um tema de conversa foi a guinada de orientação na política externa do Brasil, uma diplomacia agora exótica que atingiria os interesses brasileiros, olhados com olhar caolho e turvo pelo muito exótico chanceler do país. Logo aduzi a necessidade de estímulo para nutrir o comércio bilateral com a China. Calaram-se desta vez.
Ainda quis abordar a indecência da proposta de interesse do governo, patrocinada por Toffoli e Aras ao retirar do Ministério Público acordos de leniência, jogando nos braços do governo como a AGU (Advocacia Geral da União) o desmantelamento da saudável independência da Força Tarefa de Curitiba. Que, expliquei aos interlocutores, foi um raro momento de orgulho da cidadania e de benefícios jamais experimentados no país, como prisões de poderosos nunca punidos e o retorno aos cofres públicos dos milhões roubados da Petrobrás e empreiteiras. Verdade indiscutível que a grande maioria dos eleitores brasileiros reconhece.
E quando estava prestes a fazer a defesa do Juiz Moro, eles apenas me perguntaram se o probo Moro não havia afiançado na primeira hora a moralidade do governo Bolsonaro, como seu Ministro da Justiça. Sequer tive ânimo para retrucar que ao defenestrar Moro o presidente se ligara ao Centrão, deputados oportunistas já apoiadores de Lula, Dilma e Temer, além de devotos do toma lá da cá, para a nomeação de cargos públicos. Uma aproximação que o presidente teria jurado não mais viabilizar. A isso foi obrigado pela má-gestão de sua assessoria política junto ao Congresso Nacional. Onde lhe seriam subtraídos votos para as reformas e um eventual impeachment.
Para certo consolo meu, eles voltaram ao primeiro item das conversas, a proximidade entre nossos presidentes. E afiançaram que Trump também se aliou a segmentos nada recomendáveis no Congresso Americano. Respirei.
Terminei lhes recomendando um humorista brasileiro que foi estimulante filósofo, o Millôr Fernandes, querido amigo de décadas – “Jamais diga uma mentira que não possa provar”.
A carapuça desta verdade cabia como uma luva aos nossos presidentes gêmeos.
Eles, deliciados, me pediram que lhes remetessem alguns livros do imortal Filósofo do Méier, mestre em definir verdades e mentiras.
Ricardo Cravo Albin