“Vender o Palácio Capanema num feirão de imóveis seria o símbolo final do desmonte cultural no Brasil”.
Bernardo Mello Franco
Outro dia, em conversa com amigo muito íntimo, fui questionado por que eu carregava as tintas ao escrever sobre o atual mandatário do país. Era antipatia pessoal ou inimizade ideológica? Nem uma, nem outra. Sempre me limitei a considerar os presidentes do meu país pelos atos, pelo que cumprem ou não as promessas de campanha. Até pela sacralidade dos votos que os elegem.
A cada crônica que produzo semanalmente para uma ampla rede, inclusive internacional, liderada pelo Correio da Manhã on-line, jamais me afastei da verdade, mesmo que me doa ao falar do país que amo.
Não cabe, nem há tempo, para enumerar do que discordo de Bolsonaro, desgostos que em nada me apetecem. Muitíssimo ao contrário, afligem-me ao coração já que sou fruto de uma geração adestrada para amar e defender o país, torcendo sempre para que seus presidentes fossem bem-sucedidos e levassem o Brasil aquilo a que almejamos, a nação de um futuro pacífico.
Depois da derrota na Câmara do voto escrito; depois da teimosia em expor as Forças Armadas ao vexame do desfile militar na Esplanada dos Ministérios; depois de a execução do orçamento perder a transparência; e agora a inconveniência única de o executivo pedir ao Senado o impedimento de dois ministros do STF, eis que me são esfregadas à cara duas aflições, vitimadas por falta (e disso reclamo, sim, com veemência) de mínima gestão e assessoria palacianas. O primeiro grave insulto foi rebaixar a já insuficiente verba do IPHAN, afeto de todos nós intelectuais, que cuidamos da manutenção da memória e do acervo nacionais.
Os fatos: o IPHAN tem em 2021 o menor orçamento dos últimos dez anos para preservar o patrimônio. Só para que choremos juntos, as verbas para preservarem nossas cidades históricas despencaram de 143 milhões (2019) para 31 milhões em 2020 e vergonhosos 9 milhões em 2021. São valores confiáveis da plataforma Siga Brasil, do Senado Federal, cujo presidente, Rodrigo Pacheco, aliás, é merecedor do título com que vem sendo mimoseado em qualquer lugar, a “Revelação Política” deste 2021 – talvez, quem sabe, a desejada terceira via nas eleições de 2022?
Vale em resumo registrar: o orçamento total do órgão para 2021 é de 325 milhões. Ano passado, vejam, foram 399 milhões. O segundo susto que o governo teve a petulância de impor ao país e aos que cuidam da memória e dos bens públicos, foi a insanidade anunciada – a princípio me recusei a acreditar – pelo Ministro Paulo Guedes.
Aparentemente no afã de justificar a derrubada das verbas do IPHAN, o Ministro da Economia anunciou que venderia imóveis da União. E soltou a bomba – o Palácio Gustavo Capanema estaria à venda! Não carece aqui descerrar a cortina de ouro maciço que guarnece a importância histórico-artística de um dos mais famosos marcos da arquitetura universal – sim, transcende de muito o próprio país que o ergueu. O ministro -há que considerar- foi esperto o suficiente para anunciar tal insulto somente depois de encerrado o Congresso Mundial de Arquitetura no Rio. O que causaria um escândalo internacional, por certo. Anotem: nos últimos sete anos, a União investiu nesta joia do Brasil 100 milhões de reais para restaurá-lo. A histórica sede do antigo Ministério da Educação e Saúde nasceu do traço original do gênio franco-suíço Le Corbusier, em visita ao país em 1936. O projeto foi desenvolvido pelo embrião de jovens notáveis que criariam a moderna arquitetura, liderada pelo futuro construtor de Brasília, o mestre universal Oscar Niemeyer. Com adereços de toda cúpula de artistas de sua geração: azulejos de C. Portinari, esculturas de B. Giorgi e jardins de Burle Marx. O museu a céu aberto seria inaugurado por Vargas em 1945. Hoje o edifício de 16 andares abriga parte do acervo da Biblioteca Nacional. Mas mesmo se estivesse totalmente vazio, estaria superpovoado de história e importância capitais para o Rio.
De fato, a representação de tudo de moderno no Brasil começou por ali. Uma esquina plena de referência da criatividade de jovens que compartilharam a aventura da renovação, da criatividade, do gênio de um país. Que jamais poderia sequer ousar em tamanha blasfêmia contra seu povo e sua arte.
Ricardo Cravo Albin – Obs: Já nas Livrarias da Travessa o livro da Editora Batel “Pandemia e Pandemônio” – Relatos indignados deste cronista, com recomendações da escritora Nélida Piñon, e dos médicos-cientistas Margareth Dalcolmo e Jerson Lima.