Não sei bem por quê, mas uma quantidade singular de biografias inconclusas sempre atravessou meu caminho literário. Arriscaria até o despudor de esboçar a existência de uma certa nuvem, ou, quem sabe? uma poeirinha de (insustentável) maldição.
O fato é que, desde meus melhores tempos à testa da consolidação do Museu da Imagem e do Som, lá pelos idos 60-70, me deparei com, vejo agora, várias aflições sobre biografias. Minhas, inclusive, como a de Roquette Pinto (admiração visceral que sempre nutri pelo grandíssimo brasileiro), de quem juntei papelório interminável de encher gavetas e gavetas por anos a fio. Isso na expectativa de me debruçar com firmeza a escrever-lhe vida e obra… mas sempre no ano seguinte. Contagem adiada por duas décadas, para meu desalento e derrota. Outro revés constrangedor que me anoto terá sido a biografia de meu amigo André Filho, o autor do hino Cidade Maravilhosa. Durante tempão quase desavergonhado, a família do compositor esperou meu livro. Esperou debalde, espetando-me demissão do encargo, e com toda razão.
Certa ocasião, cheguei a elaborar dentro do MIS pressuroso edital para três biografias, contemplando Donga (o pioneiro do Samba), Nazareth (o pioneiro do Choro) e Lamartine Babo (o pioneiro da Marchinha). Escolhi três escritores, contratei-os e, para meu desconsolo, o primeiro morreria, o segundo abandonaria o trabalho por doença, e o terceiro, ó sina!, foi assassinado pela truculência do AI-5.
Volto agora ao título do artigo que leem, e que encabeça estas reminiscências. A aflição de hoje me amargura e se soma ao desconsolo, porque se trata da morte súbita de Daniel De Plá, autor da biografia, em processo até ontem, do cantor Bezerra da Silva. Uma das originalidades mais polêmicas da MPB, o sambista-maldito só agora está revisitado, e em processo de resgate, pela academia universitária. Bezerra foi vítima de preconceito feroz, o que é analisado com lupas por brasilianistas norte-americanos e europeus.
Pois bem, o Daniel – que morreu há dias fulminado por infarto em plena sala de sua aula na Fundação Getúlio Vargas – se devotou à pesquisa do ídolo ao longo de vários anos, coletando fartíssimo material iconográfico e em vídeos.
Nada, nada mesmo escapou à fúria do biógrafo para construir um livro e um documentário.
E eu, como velho pesquisador e orientador de (já lá se vão) três gerações de aficionados, posso declarar que Daniel de Plá terá sido dentre todos o mais aplicado e incansável. A tragédia fica clara aos meus olhos: o autor resta inédito, a memória de Bezerra da Silva, órfã. E a pesquisa penará no amargor da solidão. Aonde este país desterra seus pensamentos e obras mais originais e provocadores.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do
Instituto Cultural Cravo Albin