Arquivo da casa de shows mais tradicional do Rio, agora no Instituto Cravo Albin, traz pérolas e curiosidades
Ou seja, sob um olhar aberto, as memórias de um outro Rio, um outro Brasil, uma outra música popular brasileira – todos eles, de algum modo, presentes ainda hoje de forma menos ou mais evidente. E, sob uma perspectiva específica, a história de uma das casas de show mais importantes do país – inaugurada em 1967 e de portas fechadas desde 2010.
A ideia de guardar os documentos que hoje se encontram no instituto foi de Maneco Valença, produtor da casa desde sua fundação e primo-irmão de seu proprietário. Um trabalho que começou já na década de 1960. Quando o Canecão foi fechado – a UFRJ, proprietária do imóvel, recuperou o direito sobre ele depois de uma batalha judicial de três décadas -, Maneco levou o acervo para um depósito em Botafogo. Agora, quando teve que tirar o material de lá, pensou em entregá-lo a Ricardo Cravo Albin.
– Tenho essa natureza de colecionar. Não sei muito bem por que comecei a guardar as coisas – conta Maneco. – Juntei muitas fotografias da época, e também roteiros como os do show de Chico Buarque com o MPB-4, Jacques Klein e a Orquestra Sinfônica Brasileira regida por Isaac Karabtchevsky. Também estão no arquivo os primeiros shows de Roberto Carlos no Canecão, como o “Emoções” (de 1981/1982) e aquele em que ele se vestia de palhaço (de 1978). Gravei alguns shows também (como “Brasileiro, profissão esperança”, histórico espetáculo com Paulo Gracindo e Clara Nunes, de 1974, e a apresentação de Tom Jobim em 1993, um ano antes de sua morte), mas muitas vezes esbarrei em artistas que não autorizavam a gravação.
Maneco destaca também o material da Banda do Canecão, atração de sucesso dos primeiros anos da casa – inaugurada como cervejaria, com pompa, numa festa também registrada no acervo.
– Eles chegaram a gravar 18 LPs – lembra Maneco. – Todos eles estão no acervo.
A Banda do Canecão, os bailes de carnaval da casa, o Baile da Pesada de Big Boy e Ademir Lemos, a consolidação da geração da MPB surgida nos festivais da década de 1960… Esses diferentes momentos estão, ainda de forma desorganizada, nas caixas. O projeto de Cravo Albin, criador do instituto que leva seu nome, é conseguir algum tipo de patrocínio para, num primeiro momento, catalogar o acervo e, depois, pensar em produtos a partir dele, como livros e exposições – a tempo do aniversário de 50 anos da fundação do Canecão, em 2017.
– Vamos solicitar à Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), nossa parceira há muito tempo, bolsas de estudos para arquivistas trabalharem sobre esse material – explica Cravo Albin. – Depois, precisamos de patrocinadores interessados em tornar possíveis nossos projetos com o acervo, um arquivo faiscante e poderoso, uma mina de ouro em termos históricos. É uma memória que interessa ao Brasil. Fui procurado por uma produtora(a Visorama) que prepara um documentário sobre o Canecão, o que mostra esse interesse.
Cláudio Reston, um dos sócios da Visorama, reafirma a importância da história da casa e de seu acervo.
– Nossa ideia é fazer um documentário sobre a história do Canecão e, mais do que isso, sobre a história da música brasileira pelos olhos do Canecão – explica Reston, que durante sua pesquisa para o filme teve acesso ao material depositado no Instituto Cravo Albin. – Pelo que vi, o acervo tem muita coisa interessante, sobretudo dos anos 1960 e 70. Achamos importante fazer esse filme porque daqui a um tempo, com a casa fechada, tudo isso pode cair no esquecimento, as pessoas não vão saber como esse espaço foi importante para o rock brasileiro, por exemplo, ou mesmo para o amadurecimento do show business nacional.
O verdadeiro volume do acervo só poderá ser percebido depois que ele for devidamente decupado – afinal, há ali muito material referente à administração da casa, como notas fiscais de fornecedores. Porém, há também pérolas facilmente identificáveis que saltam do arquivo à primeira vista.
Um exemplo é o roteiro de “Deus lhe pague” (dirigido por Bibi Ferreira, com música de Edu Lobo e Vinicius de Moraes) com anotações de Millôr Fernandes, que assina a adaptação da peça de Joracy Camargo. Para a encenação de 1976, contexto que envolvia uma ditadura militar vigente e vigilante, Millôr puxou uma linha no roteiro e acrescentou uma fala ao diálogo sobre esmola: “É um ato político como outro qualquer.
Você tem que entender a psicologia de quem dá. Quando eles dizem ‘quem dá aos pobres empresta a Deus’, confessam que não dão aos pobres, emprestam a Deus. Estão esperando os juros, Barata!”. Ou a gravação da entrevista de Elis Regina na qual ela diz que “a única saída pro show business no Rio é o Canecão” e, acompanhada de Roberto Menescal ao violão, canta “O barquinho” e “As curvas da estrada de Santos”.
Há registros presentes no acervo que tocam direta e ternamente na memória afetiva de várias gerações, como a pasta de “Os saltimbancos”, musical infantil de Chico Buarque, adaptado de obra de Luiz Enríquez e Sergio Bardotti. Estão lá fotos do elenco, o roteiro e bilhetes que um dia foram mera comunicação burocrática entre os diferentes setores da produção, mas que hoje dão graça ao passado: “Boneco da galinha: consertar o cabelo”.
Os tradicionais bailes de carnaval da casa estão documentados em fotos, cardápios e no repertório da banda durante a festa – como em 1978, com a infalível sequência inicial de “Cidade maravilhosa”, “Quem não chora não mama (Antiga ‘Bola Preta)”, e “Mulata bossa nova”. Um carnaval de salão, segundo Cravo Albin, “menos careta” do que o de hoje.
– Pelas fotos, vemos muitas mulheres nuas. E era um carnaval de gala, o baile mais importante do Rio – nota o pesquisador. – Desde seu início, o Canecão assumiu a tradição do grande baile do Teatro Municipal, que vinha desde a primeira metade do século XX.
A percepção do Canecão como um lugar pertencente ao passado do Rio pode ser alterada nos próximos meses. Essa é a intenção da UFRJ, que planeja lançar em março um edital para a ocupação da área onde funcionava a casa – um plano que inclui a reabertura do local, agora rebatizado como Espaço UFRJ.
– Será um equipamento público voltado para a difusão da arte e da cultura, em particular da música popular – adianta o professor Carlos Vainer, coordenador do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e responsável pelo projeto de recuperação da casa. – Em virtude de uma ocupação ilegal, o local se transformou numa referência da música popular brasileira, um patrimônio cultural da cidade. A universidade entende que deve respeitar isso e que tem a obrigação de devolver esse espaço à cidade. Ele não será voltado exclusivamente para a música, mas será prioritariamente dela e das artes cênicas.