O entardecer de quase todos os artistas, sobretudo aqueles que brotam diretamente da alma popular, é, quase sempre, desolador. A miséria fica à espreita, golpeando-lhes sem piedade até a subsistência física, quando não, fazendo-os padecer de solidão e de abandono. E, creiam, os reclamos expressos ai acima não são figuras de arredondamentos retóricos, muito menos de consideração apenas da boca pra fora.
Ao longo de quase uma década, ao consolidar o Museu da Imagem e do Som nos anos 60, convivi com a miséria e a desolação de artistas queridos. E, a partir daí, a carência e o abandono de tantos de minha estima se fizeram tragicamente aclarados dentro de meu coração.
Um soluço de compaixão e inconformismo levou-me a tentar afagos pontuais em socorro do desespero de tantos deles. Acode-me agora, pela brisa da memória, os espetáculos que promovi pelo MIS para arrecadar fundos destinados à finalidades as mais diversas. Fiz shows para manter o sambista pioneiro João da Bahiana com assistência de enfermagem pessoal e permanente no hospital, já à beira da morte. Outros tantos para arrecadar fundos para Alaíde Costa poder fazer urgente operação nos ouvidos. Ou ainda para tirar de dificuldades cavilosas gente de benquerença pública como Moreira Silva, Aracy Cortes ou Grande Otelo. Tudo nos anos 60, virada dos 70.
Recentemente, assisti, com o coração consternado, ao abandono de amigas queridas como Carmélia Alves, ou Carminha Mascarenhas, ou mesmo Rosana Toledo, Helena de Lima e até o maestro Edson Frederico, as duas primeiras conduzidas por mim ao Retiro dos Artistas. De resto, uma digna instituição que acolhe fraternamente os abandonados pela sorte, como os citados acima, que não puderam ficar sem cuidados, ou sem companhias. Ou até sem comida.
Há dias , fui procurado pelo dançarino e cantor Bob Lester, cuja alma inquieta não se acostumou à disciplina do Retiro. E, aos 102 anos (102!!!), aspira a viver sem quaisquer amarras, e poder sorver , livre como passarinho, as ruas e o bulício da cidade. Andarilho rebelde que sempre foi.
Ao se propor para ele uma contribuição de amigos no sentido de mantê-lo em um quarto modesto de hotel de segunda categoria, argumentou nosso querido Jerry Adriani que isso poderia ser um paliativo. E que logo a situação de carência do Bob se perpetuaria. Mas uma pergunta se faz obvia, necessária, até por piedade. Aos 102 anos, que futuro longínquo e que doações prolongadas provocarão incômodo aos que contribuírem com ele? Francamente… Aos 102 anos?
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Instituto
Cultural Cravo Albin