“Qualquer pessoa mais sensata sempre soube que se armar um país provoca aumento da violência. Muito especialmente em países menos equipados para combate-la.” – Nélida Piñon em entrevista (2020) a R.C. Albin para a Rádio Roquette Pinto.
Agora que se apuram e se cobram muitos dos atos do governo anterior de Bolsonaro, às vésperas da instalação da polêmica CPI dos ataques golpistas, impossível não voltar aqui às contradições de como se pensa mal – e se argumenta pior – neste país que parece fugir às origens das coisas.
E começo com a citada CPI a ser instalada depois de amanhã. Pareceria óbvio à sensatez comum que os atos golpistas de 8/01 seriam provocados pelos acólitos do governo que perdeu às eleições. Natural seria o atual governo exigir sua instalação a mais premente, e a mais rigorosa. O que se vê agora? Os possíveis golpistas a ensaiar o oposto. Ou seja, um país de cabeça para baixo. A vítima do golpe, Lula, teria estimulado, segundo seus opositores, a barbárie apenas para culpar os golpistas.
Os golpistas, animadíssimos, argumentam a tese de “republiqueta” da banana, que o general Gonçalves Dias e seu CSI teriam facilitado a invasão ao Planalto. Sem se darem conta da simplicidade franciscana: O fator surpresa e o despreparo teriam imobilizado o chefe do GSI, cercado (aí sim, ele tem toda a responsabilidade) por oficiais aliados a seu antecessor, o Gal. Heleno. E não afastados de imediato. Os mesmos que permitiram núcleos golpistas acampar por semanas em frente ao Quartel-General do Exército.
Temer-se que a CPI faça mais estragos ao governo atual que ao anterior é fugir à lógica das origens. “E dos princípios também”, como me observaram há pouco por telefone meus interlocutores em Washington, cuidadosos analistas das encrencas que vicejam por aqui.
Com muxoxos semelhantes, eles também comentaram dos riscos de a população ter armas às mãos, o que se discute abertamente em círculos acadêmicos norte-americanos.
Aliás, em nenhum momento meus observadores de lá perdoam Trump pela invasão do Capitólio, argumentando que o 8/01 daqui foi ainda mais grave que o ocorrido na capital americana. Mesmo com os líderes (Bolsonaro e Anderson Torres, segundo eles) refugiados longe, mas possivelmente confabulando no sul dos Estados Unidos, onde ambos estavam.
Passo agora à minha constante insatisfação, o armamento indevido da população. Estatísticas recém levantadas dão conta de que os CACs (sigla para colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, ou clube de tiros), os maiores beneficiários da desastrada política armamentista, anunciaram que o número de armas roubadas ou perdidas bateu recorde em 2022, com 1.315 casos registrados. Meu Deus, o previsto pelo bom senso começa a vir à tona. A cada dia três armas registradas no país são extraviadas. Dados, asseguro, confiáveis porque compilados pelo Exército (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, o SIGMA) e publicados pelo O Globo. As autoridades atribuem esse aumento, o que é muito mais preocupante, à simulação do roubo de armas com o intuito explícito de vendê-las…ao crime organizado. A Polícia Civil do Espírito Santo descobriu que o temível fuzil S.56 apreendido com traficantes de Vila Velha constava como furtado no Sistema do Exército. A arma estava registrada em nome de um CAC, que simulou o furto para escapar da fiscalização do Exército e da ação policial. O tal CAC continua em prisão temporária. Quando foi preso, a arma extraviada (no comércio legal ao custo de 20 mil reais), foi repassada por 70 mil. Um lucro apetitoso de 50 mil…
Segundo reportagens que li no O Globo, quadrilhas do Rio e de São Paulo passaram a usar laranjas com certificados de CAC para ampliar seus armamentos pesados e letais. O Ministério da Justiça finaliza agora o recadastramento de armas – absolutamente urgente, observo eu – que está sendo concluído pela Polícia Federal.
O número de armas roubadas ou desviadas deve aumentar dramaticamente. Ou seja, precisamos identificar quantas das quase 1,2 milhões de armas compradas nos últimos anos continuam nas mãos dos bandidos. Isso porque nem sempre os CACs informam o Exército sobre perda ou roubo de suas armas, como determina a Lei. Conforme levantamento do Exército a maior parte das armas perdidas ou roubadas em 2022 têm como procedência São Paulo e Rio Grande do Sul. Por que? Porque tanto um quanto outro tem proporção maior dos CACs, tão prestigiados pelo governo anterior.
Agora o Brasil finalmente deverá saber quantas armas foram desviadas para o mais terrível inimigo da nossa sociedade, o crime organizado. Não sem tempo.
Para finalizar, tudo isso era previsto antes, muito antes, com temor justificado. E o governo de então fez ouvidos moucos.
Ricardo Cravo Albin
02/05/23