“De fato, Nelson Rodrigues tem toda razão, a pátria de chuteiras é muito melhor que a pátria dos fuzis.” – Vinicius de Moraes, em depoimento para o MIS em 1970.
Assisto às Copas desde adolescente e sempre me apaixonei pelos países onde elas se desenvolvem. Tanto quanto pelo futebol, o bom futebol do Brasil por exemplo, na Copa de 1970.
Agora, ao acompanhar as singularidades do Catar fiquei de imediato impactado pelas obras em plena aridez do deserto. Mas enquanto reluziam as seduções das originalidades e extravagâncias da dinheirama derramada pelo pequeno país biliardário, os jornalistas investigativos traziam à tona as maldições dos pecados, muitos inimagináveis e para além de perdoáveis. Ou seja, eu que queria em férias próximas visitar todos os milagres plantados no deserto, comecei a refrear o entusiasmo que já me embriagava.
Vamos por etapas, para eu bem definir as mudanças de humor e de desejo sobre o Catar. A escolha do país árabe em 2010 como sede da Copa derrotando os Estados Unidos ficou logo envolvida por suspeitas de corrupção. Lembro-me de que provocou perplexidade a declaração de Joseph Blatter, então Presidente da Fifa, ao pespegar à escolha do Catar como “grave equívoco” – Por que? O mundo se indagou. Por vários motivos, a se iniciar pelas altas temperaturas no deserto e sobretudo, pelo torneio ser transferido para novembro, o que tumultuou o calendário das ligas europeias e sul americanas. O Catar – aliás, eu desconhecia o adjetivo “catarense”, apenas razoável, mas não sedutor – ergueria, desde que escolhido, uma infraestrutura gigantesca, digna dos potentados árabes. Até uma nova cidade – Lusail – foi construída, bem como um aeroporto novo, ao lado da capital Doha. Foram levantados oito novos estádios para a Copa, apenas um, acreditem, sem refrigeração.
Os projetos biliardários foram requisitados a arquitetos de renome mundial, bem como hotéis de altíssimo luxo. Isso sem contabilizar uma nova ferrovia e três estações de metrô igualmente suntuosas e sem paralelo em qualquer país do mundo.
E aí chegam os repórteres investigativos para apontar fatos repulsivos. Tais como trabalhos quase escravos nos canteiros de obras, retenção de passaportes dos imigrantes pobres e já submetidos às situações de escravidão medieval.
Diante das denúncias, o governo catarense foi obrigado a mudar as absurdas normas empregatícias então praticadas. E graças aos repórteres o mundo pode saber que é a Copa mais cara dentre todas. U$ 220 bilhões de dólares, quase vinte vezes o custo da Copa do Brasil, a mesma do vexame histórico dos sete a um. O mais grave de tudo também foi logo denunciado para horror mundial: a violação dos direitos das mulheres e da população LGBTQ +. Logo explodiria uma frase intimidadora de Khalid Salman, embaixador da Copa e ex-jogador da Seleção de Catar: “os gays serão apenas tolerados desde que respeitem as leis do país, mas às mulheres ocidentais eu recomendo que sigam o comportamento recatado de nossas mulheres.” A frase detonaria uma chuva de protestos pelo mundo. O cantor Rod Stewart anunciou que recusou cachê de U$ um milhão para se apresentar no evento. As cantoras Dua Lipa e Shakira também rasgaram seus contratos. Outra contrariedade causada aos torcedores já hospedados no Catar (cerca de 1 milhão de turistas hoje no país) foi a proibição da cerveja nas últimas horas. De mais a mais, outra grandíssima dor de cabeça para a FIFA, foi o processo movido pela cervejaria mundial, um dos maiores patrocinadores do evento.
A FIFA, de resto, vem demonstrando não só contrariedades pontuais como vem praticando uma paciência de Jó com o rosário de problemas despejados na cabeça de turistas de países do mundo inteiro, com o hábito arraigado por décadas a fio de comparecer às diversas sedes do evento internacional. Talvez a mais aclamada competição do mundo, como a definiu Barack Obama.
Em relação a mim, a vontade de perambular em férias futuras pelos milagres erguidos pelo Catar em pleno deserto se arrefeceu. A não ser que o Brasil conquiste a Copa catarense.
Como todos almejamos. Até quinta. Todos juntos com o coração na mão com a estreia contra a Sérvia.
Ricardo Cravo Albin