Quem lutou contra o preconceito racial toda uma vida, como eu, fica triste ao se deparar com uma polêmica inoportuna e injusta contra a cantora Fabiana Cozza. E por um simples fato: ela ter sido escolhida para viver no palco Dona Ivone Lara, recém-falecida.
Incensada como rainha negra, o que de fato era, pela elegância, pela importância e pelo pioneirismo dentro da cultura carioca, Ivone Lara havia apontado Fabiana para interpretar sua vida e obra em teatro. Também a produção da peça teatral se entusiasmou com a cantora ungida pelo próprio mito biografado. De repente, alguns segmentos negros levantaram vozes contra Fabiana. E por quê? Porque apregoam “a não pretice total” da intérprete paulista, filha de pai preto e mãe branca. Portanto, mulata.
Onde já se viu tamanho disparate? Esta tolice parece condenar um orgulho e encanto brasileiros, a mulata. Gilberto Freire me disse no Museu da Imagem e do Som que a cor mulata não só seria a inexorável síntese brasileira, mas sua redenção. Aliás, o sociólogo era tão atento à voz do povo que me pediu no MIS que cantarolasse a marchinha “ A mulata é a tal”, do compositor João de Barros, o Braguinha – “ branca é branca/ preta é preta/ mas a mulata é a tal, é a tal”. Com olhos brilhantes, mestre Gilberto proclamou que os três versinhos sintetizavam, com franciscana simplicidade, sua tese sobre a integração racial deste país, aclamada em universidades de ponta como a Sorbonne e Harvard.
Convém esclarecer aqui que os segmentos radicais a apontar o dedo acusatório contra a cor mestiça de Fabiana Cozza não são unânimes. Muito ao contrário, felizmente.
O mal, contudo, teve sequência e consequência funestas. A intérprete escolhida por Dona Ivone anunciou há dias a desistência, tomada pela humilhação da injustiça contra sua cor. A família da homenageada também protestou. Tanto quanto a produção da peça, já em ensaios com Fabiana.
Acode-me citar aqui o recente sucesso teatral sobre a escritora e ex-favelada Carolina de Jesus. A atriz Andreia Ribeiro não é negra retinta. Mas não precisava trocar de pele para por de pé a autora de “Quarto de Despejo”. E com tal emoção e verdade que arrebatou todos os corações, os do público e os da crítica.
Quero registrar não apenas a intolerância dos grupos radicais, estes sim, racistas e sem a devida solidariedade à uma artista.
Essa vontade há que se respeitada, acima de teses esdrúxulas. Que qualificam a Censura, censura com a vergonha do C maiúsculo. Uma censura ainda mais cruel por atacar a própria grei, os artistas, os fazedores de beleza e de arte. E digo isso com a isenção de ter lutado em Brasília anos e anos contra a truculência censoria às diversões públicas.
Concluo minha perplexidade clamando pela volta à cena de Fabiana e de sua dignidade. Pelo respeito à Dona Ivone Lara. E pelo silêncio, sim, um silêncio obsequioso, de vozes tão inconsequentes.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin