Os leitores deste cronista estão acostumados às indignações continuadas quando eu me refiro à censura, aqui ou acolá. Esta luta, uma constante inquietação, está em minha pele. E adentrou para sempre o meu coração desde que combati a censura anos a fio em Brasília, de 1979 a 1989.
Companheiros do porte de Pompeu de Souza (representando a ABI), Susana de Moraes (representando os cineastas), Herberto Salles (em representação da ABL) e eu (titulando a ABERT, emissoras de rádio e televisão), entre outros, lutávamos todos contra a absurda censura às diversões publicas. Consolidávamos naquele tempo uma frente canônica da chamada Sociedade Civil X Governo Militar.
Aliás, este decênio de escaramuças nas barbas do Ministro da Justiça rendeu um dos meus livros mais procurados, “Driblando a censura – de como o cutelo vil incidiu na cultura” (Ed. Gryphus, 1998). E me leva até hoje a inúmeros fóruns acadêmicos, sempre a bater na mesma tecla, a liberdade do pensamento.
Este preâmbulo, que já se alonga por demais – e peço-lhes perdão pelas auto-citações – vem por conta da censura (implícita por enquanto, e ainda não explícita) à série recém-estreada da Netflix “O mecanismo”, do cineasta José Padilha.
Sei que muitos que me leem não acompanharam os oito capítulos. Trata-se de um veemente brado de repulsa aos escândalos desvelados pela Lava-Jato. Padilha, de fato, teve o cuidado – até a gentileza – de escamotear nomes comprometidos nos muitos desdobramentos da corrupção. Desvios tamanhos, em gênero, numero e grau, que quase faliram a maior empresa do país. E não só ela, a Petrobrás, mas um conglomerado de outras agências, inclusive nossas maiores empreiteiras.
A série (eu assisti aos capítulos) é elaborada com requintes de bom cinema, onde tudo tem a marca vigorosa do Padilha. Só que o roteiro trata de história concreta… e recente. É aí que mora o perigo.
Tomei conhecimento com olho cumprido, e agora aflito, que as bancadas do PT na Câmara e no Senado vão propor ações para processar a Netflix. Os ex-presidentes Dilma e Lula já fizeram protestos pessoais, defendendo-se ambos das possíveis convergências inseridas nos capítulos já exibidos. Esse tipo de “mecanismo” pode operar uma pré-censura, tipologia muito comum a tudo que vi, vivi e combati por anos ao tempo do Governo Militar.
Espero que os ex-presidentes se mantenham alertas aos malefícios de uma “virada de mão”. E, em nenhuma hipótese, permitam, sequer admitam, quaisquer ações que vitimem obras artísticas, ou mesmo cineastas de renome. Ainda que sejam contrários a eles.
O fluir da liberdade do pensamento foi bandeira comum a todos nós, lá atrás, ao inicio da saga dos barbudos do ABC.
Portanto, o escorregar no derrapante limo da censura roçará o intolerável. Todo cuidado será pouco.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do
Instituto Cultural Cravo Albin