Quando os verões se avizinham, nós, os que amamos a cidade, ficamos mais sensíveis às feridas que a ela se infligem. O calor, o desconforto do bafo quente a umedecer camisas, rostos e sovacos fazem irromper a velha malignidade dos vândalos. O mal estar provocado pelo calor atiça espíritos predadores, cujas vítimas são bens públicos indefesos. A generosa costa praieira do Rio permite esfriar o corpo. O banho, um simples mergulho, pode fornecer defesa natural para os que se dispõem a agredir a cidade.
Não se espantem com a aparentemente esdrúxula equação que registro abaixo. Acode-me citar comentário de Darcy Ribeiro, feito em verão tórrido de Maricá, ao esperar Leonel Brizolla por horas a fio diante de um CIEP.
Esvaindo-se em bicas de suor, pôs-se ao lado da piscina. Ato contínuo despiu-se e, tchibum, mergulhou como uma flecha, obrigando-me a fazer o mesmo. E destilou observação inesquecível – “aprendi com os índios que o calor queima os miolos, e faz despertar ímpetos violentos. Por isso, a qualquer limite de exaustão, eles se atiram à água sem pestanejar. E voltavam à placidez em minutos.”
Eis a razão benéfica de nossas praias da Zona Sul. A brevíssima memória acima me faz comentar a última intervenção (há dias) para repor os óculos de bronze de Drummond na Avenida Atlântica. Contabiliza-se agora mais de uma dúzia de vezes que o adereço ocular do Poeta vêm sendo arrancado de seu rosto plácido, posto em contemplação no banco da praia. Pesquisei daqui e dali, para concluir que sempre, ao danificá-lo, fizeram-no em dias de extremo calor.
Tenho comigo que os vândalos do poeta eram, sim, impulsionados pelo calor. Uma intuição secreta me faz indicar agora o exercício de outro elemento, o da inveja, pura inveja, da superioridade do agredido. O fato de lhe subtraírem os óculos poderia embutir uma tresloucada tentativa de deixar o poeta cego. Sem poder ver a paisagem, sem celebrar as meninas que o acarinham, sem testemunhar sua impávida paciência com os cocôs dos passarinhos em algaravia a seu redor. Enfim, sem o seu abismal silêncio, acarinhado apenas pelas ondas a se quebrarem metros à frente.
De fato, Carlos Drummond de Andrade foi e é a escultura do Rio mais persistentemente agredida. Eu questiono por quê não são vitimadas, na mesmo calçadão, as figuras de Caymmi com seu violão, Tom Jobim de pé no Arpoador, ou Clarice Lispector sentadinha ao final do Leme, com mão pousada sobre livro aberto, e o cão aos pés, posto em adoração à figura heráldica da dona? Mas, atenção! A de Noel Rosa, lá em Vila Isabel, é também vítima cobiçada pelos predadores. Portanto, os poetas parecem merecer mais fúria, mais golpes insensatos, mais ódio.
Concluo tristemente pela inveja, mesmo inconsciente, aos poetas. Agregada, é claro, à tentação demoníaca do calor. Por conseguinte, calor explícito e inveja implícita aliam-se. E provocam danos que ferem as almas mais atentas, as que cuidam dos adornos da cidade como se fossem seus.
De fato, são. São mesmo muitíssimo mais dos cariocas que cuidamos da cidade. Que dos desatentos de sempre.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Conselho Empresarial de Assuntos Culturais
da Associação Comercial do Rio de Janeiro