Há dias instalou-se nas redes sociais do Brasil um intenso debate envolvendo a escritora Carolina Maria de Jesus, favelada, mulher e negra, autora de Quarto de Despejo, um dos livros mais famosos não só por aqui, senão também no exterior, traduzido que foi para quase 30 línguas.
Escrito ao final dos anos 50, o testemunho da favelada de S. Paulo, também catadora do lixão fétido da cidade, comoveu e chocou todo o planeta, colocando a nu duas realidades crudelíssimas: a miséria de boa parte da população das grandes capitais brasileiras, e um grito de socorro de Carolina, também patético, e até poético. A magra e pouco alfabetizada mulher negra anotou, a cada dia, suas agruras para sobreviver.
Lembro-me de que nós, os jovens universitários daquele comecinho dos anos 60, ficamos indignados e solidários à memorialista, chegando a arrecadar míseros cruzeiros. Vagamos pelas salas da Faculdade, a nossa heroica Nacional de Direito do Largo do CACO, e colhemos óbulos generosos de dois de nossos mestres, Santiago Dantas e Hermes de Lima.
Pois bem, ao voltar a refletir sobre nossa revolta juvenil, chego agora ao paroxismo de avaliar que a situação continua a mesma, se não pior. Por isso, sugeri à Academia Carioca de Letras que prestasse reverência à única escritora negra do Brasil a merecer consagração internacional. Aliás, o mundo também se manifestou com fervor inusitado. Sartre a chamou de “filha dileta”, Albert Camus de “flor perfumada do lodo fétido” e Fellini de “personagem trágico e desconstruído”.
A Academia convidou ao debate dois escritores para analisar-lhe a obra, a poeta e atriz Elisa Lucinda e o acadêmico Ivan Cavalcanti Proença, que defenderam teses diferentes. Ele sublinhou o lado testemunhal do livro e sua contribuição social, negando ao diário, contudo, o recheio formal de literatura. Ela, afirmando que o livro era, sim, literatura. Uma obra de arte com pinceladas de poesia, além de reafirmação da coragem e da resistência dos negros aprisionados no infortúnio. Foi essa dicotomia o fósforo provocador da polêmica que se instalou, espraiando-se pelas redes sociais com veemência inesperada.
A poeta Elisa publicou ácido artigo em defesa da negritude e do viés literário da obra. O professor e crítico literário Cavalcanti Proença calou-se e se impôs o silêncio obsequioso, um ouvido surdo (creio eu) aos ataques de milhares de internautas, que o alcunhavam de racista, o que absolutamente ele não é. Quero concluir que sou – e sempre fui – favorável ao debate de ideias, que devem circular livres de qualquer censura. Aprendi com Santiago Dantas, nos verdes anos da Faculdade, que do embate de opiniões floresce a democracia.
Ou seja, do contraditório irrompem as brotoejas das sínteses possíveis.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin