Não, não choro por meu amigo Miele às vésperas de sua missa de sétimo dia. Ele não careceria desta voz ainda rouca/embargada pela emoção ao vê-lo no velório, envergando smoking, e não mais cercado por dançarinas e cantores, mas sim por flores brancas, que lhe ornavam plácida e friamente. Ele não se engrandeceria com mais palavras de louvação, logo as minhas, emudecidas, pálidas e sem valor.
Ele não assentiria com mais e mais soluços de carpideiras, quase sempre inóspitas e hipócritas. Não, ele não mais ciciaria canções de Bossa Nova, e dispensaria numa boa seu copo de uísque. Não mais exerceria , mestre que foi, a sedução e descontração embutidas na carioquice. Disso tudo, desses pequenos/grandes prazeres ele prescindiria.
Nas alturas, afagado por querubins, Miele agora regurgita em deleites outros, os eternos, os inamovíveis.
Não, não há precisão de chorar por Miele, que já desfruta da leveza das nuvens.
Choro, sim, por Anita, sua companheira de vida inteira. E a quem o destino reservou ímpio entardecer, a viuvez de mais que marido, também a de um filho e a de um pai. Anita assistiu a tudo, compartilhou de toda a efervescência borbulhante de um ser tocado pela ventura, pela irradiação da felicidade. Com todos os shows, todos os fazimentos, todos os uísques, Anita compartilhou. E absorvia seu homem contritamente, silenciosamente, como só cabe a uma devota de fervor apostolar. Os olhos de Anita testemunharam, dia a dia, a diversidade surpreendente do artista vário, do talento irrefreável e do bom humor – talvez a felicidade em pessoa – que lhe coroava a testa larga. Anita lhe acompanhou o caráter e seus bemfeitos. Dele jamais terá ouvido uma voz para agredir, ou para humilhar, muito menos para confabular inconveniências contra colegas.
Anita não mais pode assistir e acarinhar o melhor dos cariocas, logo ela que sabia até de seus pensamentos.
Choro, portanto, por ela. Anita, a que tudo perdeu em fração de segundos. A que mergulha em sombras escuras e pesadas. A que nestes dias de luto naufraga no desalento da solidão.
Pobre e querida Anita, a quem todos devemos gratidão. A gratidão por ter aquinhoado Miele tão alongadamente. Tão intensamente.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin