Um doce para quem adivinhar a qual mito eu me refiro aí no título. Forneço algumas pistas. Ele é o cantor considerado o maior de todos os tempos. Nasceu pobre, no subúrbio de Olaria, e não favorecido pela beleza física. Ele, antes de se tornar cantor, foi vítima de grave acidente, quando um de seus pés ficou embaixo da roda de aço de um bonde. Isso o faria sofrer a vida inteira, doloridamente marcando-lhe o espírito, fazendo-o viciar-se, no auge da carreira, em cocaína. Ele, no verdor dos 20 anos, experimentou a volúpia de abrir a boca e cantar. Cantar porque o destino lhe era inefreável, e o projetava inapelavelmente para a arte, para a conquista, para a futura idolatria.
Ao comecinho de carreira, exibindo-se para o maior cantor de então, Francisco Alves, o Rei da Voz, o nosso personagem provocou não só o arrebatamento dele, como também a certeza de que ali, à sua frente, fulgurava uma voz melhor que a sua, e mais fundamental que a de todos os outros. Talvez esta a razão pela qual se fez ídolo em apenas um ano, propulsionado exclusivamente pela magia da voz, que, de tal modo insinuante e perfeita, conquistou a nação ao imortalizar futuros clássicos da MPB. Ele passou a fazer gravações a cada mês, cada uma mais bem sucedida que a anterior. Pérolas musicais encantaram o país, como Rosa, Nada Além, Sertaneja, Jardineira, Lábios que Beijei, ou, nada mais nada menos, que o Carinhoso, hino dos corações brasileiros. Descobriram? Os que não responderam à banalíssima indagação carecem de aulas urgentes de cultura popular.
Pois ele é o divino Orlando Silva. Segundo o melhor da crítica, é considerado, dentre todos, o mais sedutor dos cantores. O mito refulge esta semana com homenagens que o país ficou a lhe dever por décadas.
Na sexta passada, recebeu a medalha Tiradentes post-mortem, em histórica sessão na ALERJ presidida pelo deputado Eliomar Coelho. Na quarta agora, a Academia Brasileira de Letras lhe presta tributo com um recital de exaltação, protagonizado por orlandófilos reconhecidos, como os cantores Marcio Gomes, Marcos Sacramento, Wilar Franco (fenômeno de voz igual à de Orlando), e ainda Monarco da Portela, este, dentre todos os sambistas canônicos, o mais devoto dos seus fãs. Há dois dias, neste último sábado, foi a vez de o Instituto Cravo Albin lhe reverenciar, com exposição de vida/obra, sarau e bolo com cem velas (no exato dia do nascimento, 3 de outubro). Para encerrar o mês de orlandofilia, o teatro Imperator do Méier vai lhe dedicar todo um programa conduzido por Marcio Gomes.
Justo, tudo isso? Sim, mas certamente obrigatório neste valão de desmemória em que nos chafurdarmos impiedosamente por décadas a fio.
2 de outubro de 2015
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Instituto
Cultural Cravo Albin