Acabo de receber carta surpreendente de alunos de Literatura residentes em Juiz de Fora (envio abraço saudoso ao escritor Guido Bilharinho, colega meu e de Jerônimo Moscardo, nosso amigo de sempre e morador na cidade mineira, desde os tempos heroicos do Colégio Pedro II, em São Cristóvão). A carta questionava se eu havia mesmo feito a gravação para a posteridade no Museu da Imagem e do Som do pioneiro importante da literatura Adelino Magalhães.
Atentem como os jovens de Juiz de Fora estão antenados. Pouquíssima gente conhece hoje em dia personagem tão relevante.
Respondo de imediato aos interlocutores mineiros, desfiando-lhes pequena história. A primeira pessoa que me telefonou pedindo um depoimento para a posteridade do Adelino foi Carlos Drummond, através da minha amiga diária de telefonemas a cronista Eneida, que já trabalhava comigo no Museu da Imagem e do Som. Drummond me advertia que a gravação seria urgente, já que o escritor estava muito adoentado e velhinho (1887-1969).
O niteroiense Adelino é reconhecido pela tradição historiográfica literária como dos mais importantes impressionistas brasileiros, ao lado de Graça Aranha e Raul Pompeia. Sua prosa é marcada por narrativas que oscilam entre o trágico e a violência naturalista, mas sempre impregnada de espaços oníricos e tempos alucinatórios. Em 1963, a Aguiar publicaria suas “Obras Completas” que causaram sensação. Um ano antes a ABL lhe conferia o Prêmio Machado de Assis.
Muito amigo de Manoel Bandeira, Adelino também ficaria marcado no Rio dos anos 20 e 30 por sua adesão ao palavrão, às palavras ditas pornográficas, ou sujas. Tanto que quando da entrega do Prêmio Machado de Assis, alguns escritores protestaram, porque a “ABL estaria premiando os maus costumes, a indecência”, o que levou Nelson Rodrigues e o poeta Bandeira a lhe prestarem imediata solidariedade. Segundo o cronista Carlos Maul no livro “O Rio da Bela Época” Adelino teria sido o primeiro a introduzir o “palavrão-grosso” em seus trabalhos, o que inquietou muitos de seus leitores nas décadas de 10 e 20 do século anterior. O escritor, contudo, era, pessoalmente, muitíssimo bem comportado, “muito direito”, a “pudicícia em pessoa” nos seus quase dois metros de altura e extrema magreza. Quando em algum café do Rio, que ele frequentava assiduamente, alguém emitia sonoro palavrão, Adelino enrubescia como um pimentão e abandonava a roda. Ele trazia duas personalidades em seu comportamento pessoal: era sim o escritor que não tinha escrúpulos ao fixar em seus personagens contornos até sórdidos. Mas também era o professor de meninas da Escola Normal, que detestava ouvir histórias bravias, ousadas, indecentes…
Cito textualmente Carlos Maul no seu belo livro sobre a “Belle époque carioca dos anos 20”: “Adelino trouxe para a literatura brasileira um elemento novo, o palavrão, enfeitando enredo de arrepiar sensibilidades sensíveis na tímida “belle epoque” do Rio ainda muito distante das desafiadoras Paris e Berlim daquele mesmo tempo”.
Adelino (a quem tive o prazer de conhecer pessoalmente) foi o lírico do palavrão, o poeta do ritmo escalógico, o romântico da porcaria verbal. Adelino Magalhães seria o cerra-fila do gênero, o século do palavrão, e deveria ser carregado em triunfo pelo mundo moderno a seguir. A mocidade de hoje deveria celebrar no velho Adelino o protesto, Por que ele se atrevia a veicular ditos sujos, os palavrões. “Não o cuspe, mas o escarro”, como Nelson Rodrigues ousou escrever. Tampouco eu nunca gostei de verbalizar palavrões, embora sempre respeitei seu eventual atrevimento.
Em resumo, tantas décadas depois verifico, emocionado, o quanto gente aguda e certeira como Drummond e Bandeira, além de Nelson, prestigiavam e defendiam os que foram vítimas de preconceitos por desfraldar bandeiras libertárias e fora da compreensão estreita de sua época, um tempo literário acanhado e não afeito a arroubos e extravagâncias de linguagem.
Ricardo Cravo Albin
28 de fevereiro de 2024