Escrevo na quarta de cinzas, antes do anúncio das campeãs do desfile de 2024.
Mesmo já há bastantes dias do anúncio pelo ministro Alexandre de Moraes do Golpe de Estado que pretendeu dar o ex-presidente Bolsonaro, leitores me escreveram até hoje muito inquietos, surpresos e indignados. Como já testemunhei em artigos anteriores, a consciência critica do país tinha quase certeza dessas tratativas de golpe. Cuja culminância se armaria (e em poucas horas se desarmaria) na infeliz marcha contra os Três Poderes no dia 8 de janeiro. Toda crônica política só falou das revelações (muito documentadas e surpreendentes) do Ministro Alexandre de Moraes. Pinçaria, entre tantas análises, a de Bernardo Mello Franco, que intitulou a matéria de sua coluna naquela semana de “O Bloco dos Trapalhões”. Isso por inúmeras razões, a começar pela incompetência dos cabeças da malograda insurreição. De imediato chamou-me a atenção na reunião ministerial em que se diz, alto e bom som, que o golpe estava em marcha. Quando interrogado por alguém mais prudente se as falas de todos estavam sendo gravadas, o ex-presidente disse que não, a não ser suas próprias palavras. Grave (e salvadora) inexatidão. Enquanto o país aguarda – é o que escuto nas ruas – as consequências que sofrerá o agora inquestionável chefe do pretenso golpe, registro, porque extremamente risível, outro detalhe realçado por Mello Franco: o desmaio inesperado do Tenente Coronel Guilherme Marques de Almeida ao abrir a porta de sua casa com a ordem de prisão pela Polícia Federal. Também anoto o inusitado da cena filmada do General Augusto Heleno ao receber ordem do presidente na tal Reunião Ministerial para nada mais falar sobre seu engenhoso relato de “infiltrar arapongas nas campanhas dos então candidatos à presidência”. Bolsonaro, com a sem-cerimônia habitual, declarou –“peço que nada mais fale, general, a gente conversa na nossa sala sobre esse assunto”. Frisson e silencio sacudiram a inesperada reunião ministerial, que evoco agora pela importância histórica e inesperada que obteve.
Passo agora a celebrar outro assunto pela enorme relevância para a cidade do Rio: os 40 anos do Sambódromo da Marques de Sapucaí, pelo fato de eu ter acompanhado pessoalmente toda sua criação ao lado de seus idealizadores Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro.
Recordei-me disso na cabine de carnaval da Rádio Roquette Pinto durante o desfile de segunda feira para escolha das campeãs deste próximo sábado. Comecei por relembrar do “antes da passarela”, quando um monta-desmonta de tristíssima memória punha a cidade do Rio em dois meses de alterações infernais no trânsito.
Quando inaugurado em 1984, o Sambódromo foi chamado de Avenida dos Desfiles. Depois mudou para Passarela do Samba. Finalmente, em 18 de fevereiro de 1987, recebeu o nome definitivo, Passarela Professor Darcy Ribeiro, então vice-governador do primeiro governo de Leonel Brizola. Darcy sempre foi intelectual reconhecido como antropólogo, escritor e pensador do país.
Toda complexa estrutura do Sambódromo foi construída em apenas quatro meses, de 1983 para 1984. Lembro-me de que em uma das primeiras reuniões para esse novo local dos desfiles, Niemeyer duvidou de que Darcy construiria seu projeto em apenas 156 dias, a ponto de ser utilizado no carnaval de 1984. Darcy ainda chegou a dizer – “Oscar, você me conhece desde Brasília. E sabe que eu sou de cobrar, com socos e palavrões, aos que me prometem prazos e não os cumprem”.
São inúmeras as memórias das tantas reuniões em que eu acompanhei o surpreendente Sambódromo, quase sempre ao lado do então secretário de cultura. Lembro-me de detalhes que foram reestudados até três vezes, como por exemplo o escoamento das águas em caso de chuva torrencial. Evoco ainda os estudos minuciosos para os muitos serviços paralelos como cozinheiros, garçons, seguranças e até motoristas.
E lembro-me sobretudo do frisson quando alguém veiculou os possíveis preços dos ingressos individuais e, sobretudo, dos camarotes. Oscar de imediato sentenciou – “o ingresso não poderia se equivaler à uma simples entrada de cinema. Isso não é possível. Mas poderia acumular, junto com os camarotes, recursos vultosos para as próprias Escolas de Samba”.
Outro detalhe que guardo bem na memória afetiva foi a manhã de exibição por Oscar do desenho da Praça da Apoteose. Provocou em Darcy um frêmito de emoção – “Oscar, seu sacana, mal acredito que você tenha imaginado esse ‘divinal’ meio arco para pousar – tal como uma coroa – ao final do desfile. Quero cópia em miniatura para o meu túmulo, se eu algum dia tiver mesmo que morrer”. Ao que Oscar retrucou bem humorado – “Como você até poderá mesmo morrer algum dia, embora todos duvidamos, vou preparar sim, o meio arco da Apoteose de Darcy Ribeiro. Nem carece, Darcy, você já é a própria apoteose…”.
Teria muito mais recordar aqui. Mas temo pela inexatidão da minha memória, passadas já quatro décadas de uma das grandes obras que o Rio já levantou. Ao menos, a mais famosa no mundo inteiro.
Ricardo Cravo Albin
14 de fevereiro de 2024