“Tenho sangue de negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.” – Chico Buarque em discurso ao receber o Camões.
O dia de hoje (25 de abril), quando escrevo o texto abaixo, ficará marcado na história da literatura de língua portuguesa, porque não apenas o escritor, mas um dos personagens mais estimados do Brasil acaba de receber finalmente o Prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa. Isso ocorreu há poucas horas, às vésperas das celebrações da Revolução dos Cravos, em cerimônia na cidade portuguesa de Sintra. O cantor, compositor e escritor Chico Buarque recebeu o Camões quatro anos depois de ter sido escolhido por júri luso-brasileiro. Por que?
Todos sabemos que o então presidente Bolsonaro se recusou a assinar a documentação necessária para que Chico pudesse recebe-lo, mesmo se fosse, como foi, em Portugal. O que causou surpresa e indignação aos meios literários de ambos e da Comunidade de Nações Lusófonas. Tenho orgulho de recordar que publiquei neste mesmo espaço vários artigos reclamando do gesto inusitado do então presidente, que causou consternação não apenas entre escritores, mas na opinião pública dos dois países, além do incômodo explicitado pelo presidente de Portugal, país mãe da Lusofonia.
A subtração pelo Brasil do troféu a Chico foi questionado por mim como presidente da Academia Carioca de Letras (que era então) e do Pen Clube Internacional do Brasil (que ainda sou). Por que? Que motivos provocariam gesto tão inusitado, jamais ocorrido antes? Quando Lula se elegeu, cobrei-lhe a dívida ao Buarque, a quem o Brasil devia explicações urgentíssimas.
Há poucas horas acompanhei o gesto de reparação, presidido pelos presidentes Lula do Brasil e Marcelo Rebelo de Portugal na cidade histórica de Sintra. Em discurso no Castelo de Sintra (onde nasceu e morreu Pedro I, nosso herói nacional) o muito simpático presidente português comparou Chico a Bob Dylan, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2016. Marcelo foi certeiro ao declarar que Dylan é celebrado apenas por sua música. Já Chico, além da música enraizada em tantos corações, fez obras elogiadas na literatura e no Teatro, isso sem contar o fato de ser ídolo popular de alguns milhões de cidadãos. O presidente do Brasil, Lula, que se declara grande admirador do compositor, enfatizou que subtrair-se prêmio dessa importância por quatro anos de um brasileiro de essência foi dos maiores absurdos contra a cultura nos últimos tempos.
O Camões, parceria entre os governos de Portugal e do Brasil, foi criado em 1988. Entre os brasileiros laureados estão Raduan Nassar (2016), Ferreira Gullar (2010), Lygia F. Telles (2005) e Jorge Amado, um pouco antes em 1994. O premiado recebe cem mil euros.
Além de Chico, ainda devem receber o Camões o português Vitor Manuel de Aguiar e Silva (escolhido em 2020), a moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o brasileiro Silviano Santiago (2022).
Em seu discurso de hoje, Chico, todo sorrisos, foi irônico ao declarar que “conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a fineza de não sujar o diploma do meu prêmio. Recebo o Camões menos como honraria pessoal e mais como desagravo a tantos autores ofendidos nesses últimos anos de obscurantismo.”
Chico Buarque lançou seu primeiro livro de ficção “Fazenda Modelo” em 1974. Quanto à música popular, consagrou-se em definitivo com “A Banda”, cantiga que se incorporaria aos corações de tantos quantos a conheceram à época. Sedução ainda hoje continuada. O primeiro romance “Estorvo” foi lançado em 1991. Escreveu “Benjamin” em 1995. Em 2003 Chico Lançou “Budapeste” e em 2009 o “Leite Derramado”. Seu último romance antes do Camões foi “Irmão Alemão”, de 2014.
Sem espaço para me deter na extensa e preciosa obra de cantor e compositor, bem como nos seus elepês (tenho-os todos, sempre a mão), registro aqui – o que lhe é devido – suas peças teatrais: “Roda Viva” (1968), “Calabar” (1972), “Gota D’Água” (1974) e “Ópera do Malandro” (1978).
Vale reiterar aqui mais uma vez que o Prêmio Camões é a mais importante premiação para quem escreve em língua portuguesa e contempla apenas autores da comunidade da “Última Flor do Lácio”, a CPLP. O nome, como é sabido, homenageia o poeta português Luiz de Camões (1524-1580), considerado o mais expressivo escritor da confirmação da língua lusófona.
P.S – Registro aqui palavra de gratidão aos esforços e sacrifícios do sociólogo Betinho pela criação destemida da Nação da Cidadania Contra a Fome, criada por ele em 1993.Seu filho Daniel de Souza, amigo meu de há muito, sempre evoca a frase eterna do pai – “Quem tem fome, tem pressa”. Nem há dúvida…
Ricardo Cravo Albin
25/04/2023