Para Glória Albin, nora da maior fã do Roberto Carlos, minha amadíssima mãe Zuleica.
A cada ano, neste dia 19 de abril, me acostumei a um evento único nesta Urca quase sempre morna e apascentada. Caminhante diário que sou pelo caprichoso calçadão em pedra portuguesa do bairro, me deparo por anos seguidos com um aglomerado de pessoas em frente ao prédio onde mora Roberto. Neste exato 19 de abril, do amanhecer à noite, os fãs aguardam o cantor se postar à varanda para lhes acenar.
Quando ele celebrou 80 anos, dediquei-lhe a crônica que se segue.
Comprei recentemente em brechó uma edição de livro de Santa Teresinha, personagem litúrgico de larga admiração minha, até porque exercitou sua alma em versos de branquíssima pureza, uma poesia de tal leveza que sempre me pareceu plumas infensas à gravidade, jamais baixando ao chão, em suspensão perene. E do livro colhi poema despojado que confrontava sentimentos como amor e paixão como sendo antípodas. Ela relatava a si mesma, afiançando que sua paixão inicial pelo Cristo foi um incêndio de labaredas fumegantes, avassalador, a cremar tudo que estava em volta. Assustada com aquele arroubo inesperado Teresa recolheu-se à retiro conventual em busca do arrefecimento do fogaréu. A partir daí, dessa quase inquietante experiência existencial, e até sensorial pela veemência do arrebatamento, Teresinha de Jesus soube distinguir o fogo da paixão da placidez do amor. A mística freira passou a observar um pequeno pássaro que lhe pousava ao ombro na hora do Angelus e ficava imóvel e mudo: não se mexia, não emitia um pio sequer, não lhe despejava um cocozinho, mínimo que fosse. Apenas esfregava docemente o biquinho no seu pescoço como a acarinhá-la. Enquanto outros de sua espécie jaziam em algazarra com trinados fortes e voos sucessivos.
Teresa entendeu que comportamentos tão díspares de seus passarinhos estavam a lhe trazer a compreensão exata entre paixão e amor. Paixão sendo a euforia, o calor, a vida em brasa. Amor, a placidez, a contenção, a paz, a quietude. E talvez o silêncio.
Encontrei eu, depois de meditar sobre a reação dos passarinhos da Guardiã do Coração de Jesus, a metáfora que buscava para definir e proclamar o porquê passei a entender e admirar a evolução estilístico-musical de Roberto Carlos, no exato momento da celebração dos seus oitenta anos.
RC sempre me foi simpático, até porque moramos a menos de 500m um do outro na Urca. E até porque ele sempre recebia minha saudosa mãe em seu camarim as dezenas de shows a que fomos no Canecão, por instância dela, fã de primeira hora do ídolo. Pois bem, como temos exatamente a mesma idade, mas algumas percepções estético-musicais diferenciadas ao longo desses tantos anos idos e vividos, como diria Cartola da Mangueira, aplico aqui ao Roberto a diferença entre paixão e amor, sublinhada pela Santa das Rosas, ao longo das duas fases distintas que defino em sua vitoriosa trajetória artística.
Enquanto Roberto Carlos era o Rei da Jovem Guarda ao começo de sua carreira, encantando o público específico infanto-juvenil com musiquinhas esquálidas, muitas bem enjoadinhas, carrões a 120km por hora, buzinas de bip bip esganiçados, usando medalhões, roupas exóticas e cabelos cumpridos à moda Beatles, eu estava adentrando no reconhecimento aos pioneiros do samba, a chamada Velha Guarda (lógica antítese à Jovem Guarda). Ofegantemente eu lhes empunhava a consagração da posteridade, gravando-lhes vida e obra no podium da posteridade no Museu da Imagem e do Som. Logo eles, sim, pretos, pobres, quase sempre semianalfabetos, moradores de subúrbios distantes, afastados das luzes da mídia tanto pela Jovem Guarda quanto pelos festivais de música a lançarem a nova MPB mais internacional do que nacional.
Sempre de olho no RC, porque sentia naquele fogaréu da paixão e da exasperação pelos jovens uma certa simpatia. Simpatia que decorria do fogaréu dos jovens, inquietos e apaixonados. Em que se destacavam radiações que ecoavam no meu espírito.
Em especial, a amizade entre os três jovens guardistas, Roberto, Erasmo e Wanderleia.
Ao lado da circunspecção de Pixinguinha, Heitor, Donga, Ataulpho, eu olhara o outro lado da moeda e sentia ternura, a ternura inspirada pelos olhares doces dos três, até por uma timidez que não avaliava muito bem de onde poderia emergir.
Os tempos passam e as labaredas se esmaecem. Surge um RC a caminhar não em brasas, mas por tapetes macios e apascentados, acompanhados não tanto por guitarras elétricas nem baterias, mas por violinos e discreta percussão. Intuí, que ele estava a desvelar uma fase definitiva de sua carreira. A fase da maturidade, ao inserir-se, de amalgamar-se ao referencial eterno da alma miscigenada de Brasil, o romantismo.
E o romântico RC não negava as ascendências derramadas do canto de estilistas, do porte de Orlando, Silvio, Galhardo, Nelson, Anísio Silva. A contenção logo se imporia ao antigo rebelde, roupas discretas, joias mínimas, rosas (quem sabe inspirado por Santa Teresinha?) jogadas ao público, arranjos macios, discrição na voz e músicas românticas. Muitas. E feitinhas como uma luva para a alma do brasileiro médio, romântico, e se possível derramado em paixão.
Entra década, sai década, Roberto Carlos se mantém fiel ao gosto do seu público. Um público majoritário, diga-se a bem da verdade. Um público quase sempre em delírio. Que está a celebrar a mais longeva carreira de qualquer cantor deste país – sessenta ou mais anos ininterruptos como se ele estivesse a pisar no palco pela primeira vez. E para cantar apenas seu sucesso estourado do momento. E não seus acumulados e majestáticos mais de cem êxitos.
Por isso declaro aqui que amo Roberto Carlos. Sua maturidade me faz sentir melhor e mais amoroso ao emparelhar com meus também oitentinhas. Tal como Cora Coralina balbuciou ao receber as doceiras mais velhas e pimponas de Goiás Velho, em busca de sua sabedoria na arte e na vida. “Trabalho cada docinho, como se o acarinhasse à mão, quase impondo-lhe talquinho e fraldinhas. São os meus filhos…”
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Ricardo Cravo Albin