“Vocês precisam reconhecer que Nélida Piñon já pertence ao rol do que o mundo chama de nova literatura latino-americana” – Gabriel Garcia Marques a R. C. Albin em 2002 no Largo da Mãe do Bispo.
Os cronistas que nos debruçamos a cada semana sobre os problemas que norteiam o país, afligindo-o ou lhe impondo certas melhorias, temos neste começo de semana cardápio suculento. Começando pelo voto histórico de Rosa Weber ao declarar inconstitucional (e quase imoral) o Orçamento Secreto, e seus desdobramentos decepcionantes com o pingar dos votos dos demais ministros. A exceção honrosa do voto do Lewandowski, que embora anunciado na véspera contra o voto-decência de Rosa Weber, somando-se ao colega Gilmar Peres, acabou por reconstituir a benéfica maioria pela reprovação por 6×5. Gratíssima surpresa contra o dissabor de ter sabido hoje que a “tal” sugestão da Câmara ao STF para manter o “Secreto Imoral” destinava a bagatela de R$ 1.45 bilhão em emendas para os presidentes do Senado e da Câmara. Acreditem, fatia superior aos investimentos de 14 (14!!!) ministérios. Acordo generoso para ambos, pois não? E, o pior (ou melhor), tornado público…
O domingo também consagrou a Argentina de Messi como Tricampeã mundial. E pode exibir um dos jogos mais eletrizantes de uma final de Copa, ao menos das muitas a que assisti. E sem sequer citar a definição um tanto apreensiva de novo ministério (onde fica Simone Tebet? Questiona a consciência crítica do país), além do silencio dos quarteis frente a atos ilegais de protestos contra a eleição de Lula.
Tudo isso se registraria em meu espanto como necessidades de comentários. Mas passaria a ser secundário, ao menos mas repercussão internas de minha alma, ao saber da morte de minha amiga Nélida Piñon, considerada com razão por Merval Pereira em nota da ABL como a mais importante escritora do Brasil.
Morrer em longínquo hospital de Lisboa, cercada por que afetos? Logo ela, tão envolvida com estimas e bem querenças, e tão próxima aos afagos e mesuras dos muitos devotos que, ardentes, sempre a acumulavam de sutis cuidados e toda sorte de delicadezas? Tudo isso, quando refletia sobre minha tristeza, prostou-me ainda mais abatido.
Sequer pretendo aqui enumerar as qualidades altíssimas que sempre povoaram seu intelecto, sua cultura tão afiada em apontar as origens de sua Galícia dos pais e do Brasil, seu berço. Bem como o dever de apontar necessariamente suas qualificações como ser humano fraterno, e sempre solidário às causas mais nobres do país e dos desprotegidos. Além do trato pessoal encantador pela doçura (e firmeza) de sua voz e de seus gestos elegantes.
Pretendo apenas nessas linhas evocar alguma memória que preservo comigo de amizade que nutrimos por quase sessenta anos.
Nélida foi eleita a primeira presidente da ABL quase às vésperas das celebrações dos 500 anos do Brasil. E realizou muitíssimos estímulos culturais para a vida literária por conta deste evento.
Em almoço intimo na Urca, fiz-lhe uma proposta que logo rotulei de impertinente ao encaminhar a ela entre uma garfada e outra de bacalhau assado (especiaria da qual ela assegurava fazê-la até padecer no paraíso de tanto excesso de saliva na boca): “Como você veria se sua presidência amadrinhasse a relação das canções mais belas nesses 500 anos de país tão musical?” Resposta fulminante: “Mas claro que sim, até porque você bem sabe que quem nasceu na Vila Isabel do poeta Noel tem dever de amar a poesia que se aloja na garganta do povo. Faça uma larga consulta à crítica musical e apresentaremos as dez mais votadas no nosso teatro. Até cabe mesmo à Academia ter intimidade carnal com as demais artes, tal como nosso modelo, a Academia Francesa”.
Ao lhe apresentar as dez mais a serem chanceladas pela ABL, ela se interessaria sobretudo por saber qual a música de Noel foi a escolhida, embora de pleno assentimento com as três mais votadas, Aquarela do Brasil, Carinhoso e Chega de Saudade, empatada com Asa Branca.
– “Último desejo, Nélida.” Ela suspirou um meio riso encantador e balbuciou: “Este amor que eu não esqueço/E que teve seu começo/Numa festa de São João… Meu amigo, eu vivi há tempos esta exata situação. Viva Noel, meu poeta… E minha verdade.”
Também evoco aqui os muitos encontros em que reuni Nélida à Fernanda Montenegro ao presidir a Academia Carioca de Letras. Numa, em homenagem à Paschoal Carlos Magno (que integrou a ACL), ela projetou algumas lágrimas ao reclamar do esquecimento de certos vultos notáveis em seu tempo, mas hoje desterrados ao “mais torpe esquecimento”.
Quando Nélida recebeu o Grande Prêmio Pen Clube 2021, talvez a última homenagem pública a ela atribuída, transmiti a cerimônia para todo o mundo pela internet. Em especial para os mais de 200 afiliados ao Pen Clube Internacional. Os elogios à celebração à Nélida Piñon chegaram de vários institutos culturais europeus, norte e sul americanas, quase sempre a louvando como uma das bandeiras internacionais do Nova Literatura Latino Americana, ao lado de Octavio Paz, Carlos Fuentes, Isabel Allende, Mario Vargas Llosa, entre outros. Nélida, gentil como sempre, agradeceu pessoalmente às mensagens dos clubes internacionais.
De Nélida, ainda evoco com emoção um jantarzinho embaixo das mangueiras da Urca para celebrar a nomeação dela para cátedra de duas importantes universidades norte-americanas. Estava presente Bibi Ferreira, que, logo depois de eu erguer um brinde a homenageada, fez-lhe um pedido inusitado – “Nélida, dê-me sua mão direita.” Todos nos entreolhamos com o gesto surpreendente. E Bibi, de mãos entrelaçadas com a de Nélida, recitou-lhe o belo poema “Monólogo das mãos”, de autoria de Giuseppe Ghiarone. Nélida desta vez não agradeceu, engasgada pela emoção.
Ricardo Cravo Albin
Presidente do Pen Clube e do Instituto Cravo Albin