“Oh! Que formosa aparência tem a falsidade”
W. Shakespeare
Umas das melhores frases que ouvi esta semana veio de velha interlocutora que mora em Washington e com quem converso com certa regularidade. Ela gosta muito do Brasil e acompanha o país desde que trabalhamos juntos no BID entre 1964/65, dirigido pelo economista Evaldo Correia Lima, pai do poeta Antônio Cícero, hoje da ABL. Com a originalidade que lhe marca o espírito, minha amiga começou o papo às gargalhadas –“ encontrei adjetivos intensos para agregar ao Brasil, já que você sempre me disse que seu país não é para principiantes. Mas sempre retruquei ser ele irresistível. Vou anexar mais adjetivos que lhe cabem como uma luva: incompreensível, inconstante ou até indescritível”.
E ela aduziu: “olha, caríssimo, aqui nosso grupinho de brasilianistas que ama seu país, não entende porque Bolsonaro quer porque quer a aposentadoria da urna eletrônica e a volta do velho sistema manual. Todos compreendemos com clareza os seguintes itens:
1- Desde a independência em 1822 (aliás, como estão os preparativos dos 200 anos?), houve muitos escândalos eleitorais nos quais a acusação da violação de urnas foi comprovada.
2- O Tribunal Eleitoral daí é honrado e isento, razão porque não sabemos de queixas públicas contra a apuração do voto eletrônico, ao menos com provas.
3- O sistema daí nos fez suspirar por cá, com o argumento de como um país pobre como o Brasil pode implantar um sistema sofisticado e milionário. A deixar os Estados Unidos, líder em potência econômica e digital, ainda a contar voto a voto manualmente”.
Minha aguda interlocutora, não se afastando um segundo da rigidez de sua imperturbável lógica judaica, começou a enumerar algumas considerações para confrontos de raciocínio. E perorou: “1- Por que Bolsonaro jamais provou que até quando foi eleito em 2018 a eleição eletrônica teria sido fraudada, já que ele se disse vencedor logo no primeiro turno?
2- Por que, quando as últimas pesquisas do Datafolha há dias assinalaram sua derrota em 2022 em todos os cenários, mais uma vez o Capitão assinalou que não passaria o poder por conta do sistema eleitoral eletrônico que ele considera irregular?
3- E o pior foi sabermos que o Ministro da Defesa saiu de sua esfera institucional para abrigar as Forças Armadas em aventura política, pior ainda eleitoral, e de custo altíssimo em pandemia com país de cofres vazios.
4- Essa declaração nos deixou a todos por aqui de orelhas em pé, conjecturando que seu Presidente pensaria em golpe.
5- Horas depois soubemos pelas redes sociais daí e daqui que a possível intimidação do Ministério da Defesa teria arrefecido o debate sobre a mudança no sistema eleitoral, ou seja, o Planalto já não teria apoio suficiente na Câmara para promover a derrota da eleição eletrônica”. Minha inquieta interlocutora terminou a conversa ácida, mas polidamente, como de seu feitio – “Apenas me diga quais as razões de Bolsonaro empunhar bandeira tão suspeita, em especial quando os resultados lhe são desfavoráveis nas pesquisas?”.
As insinuações do Capitão e seu Ministro da Defesa contra a votação online provocaram de imediato fortíssima reação. Os Presidentes Pacheco do Senado e Barroso do STE rebateram as acusações contra o sistema eleitoral e negaram que as eleições estariam em risco caso não haja voto impresso, além de assegurarem que a realização de eleições limpas representa um direito inegociável. Vale realçar aqui que a urna eletrônica teve entre seus inventores militares das três Forças Armadas, que há exatos 25 anos enterrou um passado de fraudes na votação com cédulas de papel. Incentivada pelo Ministro Velloso, Presidente do TSE no biênio 1994-96, a urna eletrônica tinha como principal objetivo exatamente o combate à fraudes eleitorais reincidentes no país. Velloso convocou intelectuais como Miguel Reale, Ives Gandra e até Carmem Lucia, para ao lado de engenheiros das Forças Armadas elaborarem mais um invento brasileiro para semear decência e lisura nas eleições.
Qual razão (aparentemente sem razão) de Bolsonaro e ministros quererem destruir a urna eletrônica?
Mas por falar em possíveis ações positivas do Governo, o país respirou aliviado quando o Chefe da Nação anunciou que vetaria o delírio da Câmara em ampliar de 1 para 7 bilhões o tal Fundão Eleitoral. A minha alegria durou pouco: acabo de ver na TV que ele mudou de ideia. O veto não existirá mais. O país -mesmo repudiando- gastará bilhões com nossas vestais políticas. Um desperdício insultuoso. Aguardo agora novo telefonema da amiga americana para responder o irrespondível, por que o Presidente desistiu de favorecer o Brasil ao não vetar tamanha maluquice? Falsidade, como apregoava Shakespeare?
Ricardo Cravo Albin – Obs: Já nas Livrarias da Travessa o livro da Editora Batel “Pandemia e Pandemônio” – Relatos indignados deste cronista, com recomendações de Nélida Piñon, Margareth Dalcolmo e Jerson Lima.