Não sei porque a gente fica sempre a imaginar que nosso núcleo de amigos mais chegados nunca irá ostentar seus nomes nos obituários da Peste – desculpem, mas o horror a esse vírus pandêmico me leva a não lhe explicitar o nome, nomeando-o apenas pelo genérico Peste. Infelizmente a Peste se aproxima tão veloz e despudoradamente nesta recém inaugurada terceira década do século XXI que o núcleo de amigos queridos, que nós pressupúnhamos imune a este horror, começa a abrir flancos. E o coração se dilacera um pouco a cada morte.
Semana passada estremeci com a brutalidade da morte de Daniel Azulay. Estremeci e chorei. Por todas as razões, além do artista singular de traço único, além da originalidade de sua figura física, além da graça de se comunicar pela televisão, o que encantou várias gerações, além do olhar, do se vestir, do ser amigo.
Aos 72 anos, Daniel continuava a parecer um menino, um menino de voz doce e olhos inquietos sempre a buscar oportunidades para cativar o interlocutor. Ele jamais abandonaria sua persona modelada pela televisão durante décadas, ídolo natural de crianças de todas as idades, sem forçar barras mercadológicas, tão comuns hoje em dia.
Daniel Azulay foi meu amigo por mais de quarenta anos e frequentava nosso Instituto na Urca com frequência. Arguto, culto, piedoso e bem informado, ele ora chegava para almoçar, ora chegava para tomar umas e outras, ora chegava para apenas jogar conversa fora. Mas o “conversa fora” do Daniel sempre embutia um propósito de cristalina generosidade.
Sabedor de como as instituições culturais estavam a capengar e a quase se findar por falta de recursos e de ausência de beneméritos, ele, o menino sonhador e solidário, sem dinheiros a tirar do bolso, vinha ofertar sua arte, sua imaginação. A mim sempre me comoveu sua disponibilidade para construir projetos, para dizer sim às necessidades dos que eram acolhidos por seu altruísmo. Agorinha mesmo, ao trazê-lo à minha mente e ao coração, acudiram-me fragmentos de várias de suas ideias, que fluíam com a fartura dos dotados de gênio.
Segundo ele, todos seus projetos deveriam abrir na criança o mundo mágico do imaginário, do sonho possível ao desenvolvimento criativo a ser plantado nas cabecinhas em formação. Um público ainda virgem de vícios e de tolices que o avançar da idade acaba por infligir. Todas as muitas ideias do Daniel eram sempre contempladas com assentimento geral por nossa parte. E saía ele, lépido e fagueiro como sempre, a buscar patrocínio e apoio. Que nunca chegavam. Sequer uma réstea de solidariedade aparecia. Daniel, bem humorado, desdenhava dos ouvidos moucos, da falta de cultura de eventuais patrocinadores, do esperar horas a fio em antessalas dos empresários. Até porque artista como ele tinha consciência de seus acertos, de sua grandeza, do querer ampliar cabeças de meninos em formação.
Hoje me dou conta de que Daniel, lá no fundinho de seu interesse pelas crianças, queria mesmo era ser professor. Ou seja, ele parecia ter pressa em transformar gente miúda em gente grande. Grande no sentido filosófico de expansão do pensamento, futuros homens dotados de mais criatividade, em exercício progressivo para serem livres. Sempre.
Portanto, a morte de Daniel Azulay provoca uma extraordinária legião de órfãos, todas as muitas gerações de crianças de sua Turma do Lambe-lambe que plasmaram nele um título glorioso, o de ser Professor de Vida, um mestre a incutir arte e beleza.
Ricardo Cravo Albin