A cantora Carmélia Alves – que hoje celebraria seu centenário de vida – festejou vários aniversários no nosso Instituto da Urca, inclusive a grande recepção que aqui lhe foi oferecida por mim, seu velho amigo, para celebrar seus 80 anos. Gostamos tanto, que nos anos subsequentes seu aniversário era sempre uma festeta no ICCA, até mesmo quando foi morar no Retiro dos Artistas, poucos anos antes de morrer.
Lembro-me de que tive dificuldades a convencê-la a trocar o pequeno apartamento solitário da Siqueira Campos por uma casinha bem mais confortável e, sobretudo com todas as facilidades (comida, médicos, remédios, assistência pessoal permanente) providenciadas pelo Stepan Nercessian, que prontamente atendeu meu apelo de conduzir a nossa querida amiga à Jacarepaguá.
Carmélia Alves, como está abaixo, encantaria o Brasil com o show “Estão voltando as flores”, que escrevi e dirigi a pedido dela para a volta do grupo “Cantoras do Rádio”, do qual ela era líder inconteste. O show esteve em exibição no Rio e em várias capitais por quase dois anos. Sempre com sucesso e casas lotadas.
Lembro-me de ela tinha seu número mais forte depois de cantar um xaxado. Ao terminar levantava a saia aos joelhos e dançava à moda nordestina. E dizia – “Eu tenho 80 anos e ainda dou no couro”. Espertamente segredei-lhe: – “Carmélia, já que você diminui a idade, aproveite e aumente um pouco de anos. Os aplausos dobrarão”.
No show seguinte, agora se dizendo com 88, os aplausos triplicaram. Com o público em pé…
Ricardo Cravo Albin
14 de fevereiro 2023.
“A cantora Carmélia Alves foi a mais famosa intérprete dos ritmos nordestinos a partir dos anos 50. Carmélia ganhou o título de Rainha do Baião do próprio Luiz Gonzaga, cujo centenário se comemorou em 2012. Por uma dessas extraordinárias coincidências do destino, Camélia morreu no auge das celebrações do seu maior amigo e admirador, o fabuloso Gonzagão.
Mas onde terá nascido Carmélia, em Pernambuco ou no Ceará, já que levou os ritmos do Norte/Nordeste do país à tamanha conseqüência? Aqui mesmo no Rio, para ser preciso em Bangu, onde ouvia os repentistas de cordel na casa dos pais, em plena década de 30. A menina espevitada do subúrbio logo se faria cantora, entrando para o rádio pela porta mais democrática, os programas de calouros da Rádio Nacional. Num abrir e fechar de olhos foi escalada para cantar na boate do Copacabana Palace.
A partir daí, Carmélia passou a ser considerada uma cantora com C maiúsculo no esfuziante meio radiofônico e noturno do Rio. Ela criaria delícias como “Trepa no coqueiro” (Ari Kerner, 1950), “Sabiá na gaiola” (Hervê Cordovil, 1950) e “Cabeça inchada” (Hervê Cordovil, 1951), que fizeram furor no Brasil. E a coroaram com o cobiçadíssimo título de Rainha do Baião, que era o gênero musical mais veiculado nos anos 50. Que, aliás, só declinaria quando a bossa nova explodiu, ao comecinho dos anos 60.
Em 2001, escrevi e dirigi, a pedido de Carmélia, o espetáculo “Cantoras do Rádio – Estão voltando as flores”, que acabou por se converter num grato sucesso de público e crítica, sendo encenado em quase todo o país. A tal ponto o show – que tinha em cena Ellen de Lima, Carminha Mascarenhas, Violeta Cavalcanti, além dela mesma – foi um êxito, que acabou se transformando em filme longa metragem. E mais uma vez, as eternas cantoras do rádio foram homenageadas pelas telas brasileiras. Passando seus últimos dias no Retiro dos Artistas, Carmélia Alves deixa um rastro de luz, de beleza, de dignidade. E de representação eloquente de uma era que anda esquecida: a Era do Rádio.”
Ricardo Cravo Albin / 2012.